Por Gustavo Dainezi(*)
Resumo: A sociedade atual é definida pelos estudiosos como uma sociedade de controle. Apesar de se ter a sensação de liberdade, nunca na história da humanidade houve tanto controle do comportamento humano. Além de explicar o que é uma sociedade de controle, o autor deste texto traça as diferenças em relação à sociedade que a antecede, ou seja, a sociedade disciplinar.
Palavras-chave: Sociedade de controle. Sociedade disciplinar. Liberdade. Capitalismo. Consumo.
Você já sentiu, em algum momento na sua vida, que talvez tenha agido de uma maneira que não escolheria caso tivesse um pouquinho de tempo a mais para pensar? Aquele pudim, aquela mousse de chocolate com raspas de chocolate em cima do chocolate da mousse e com uma colher de chocolate para comer tudo junto? Aquela promoção imperdível de um jogo de videogame que você não tem tempo para jogar? O sapato com 50% de desconto em que o pé dói, mas que fica muito bem no Instagram.
Você já teve a impressão de que uma propaganda que recebeu no seu celular estava estranhamente atualizada sobre suas preocupações mais recentes? Você já encontrou com uma pessoa no elevador e, minutos depois, recebeu inocentemente a sugestão da sua rede social favorita para adicioná-la ao seu círculo de amigos?
Por esses e outros importantes detalhes da nossa vida cotidiana, muitos estudiosos caracterizam a sociedade atual como sociedade de controle. Para entender o que é esta sociedade de controle vou explicar rapidamente o que veio antes dela e o que se transformou para que ela existisse.
Uma das características mais importantes da sociedade de controle é a impressão de que fazemos tudo na mais pura liberdade de agir. Porque comparamos imediatamente as nossas vidas com as vidas de quem vivia um ou dois séculos antes de nós. Comparamos nossas vidas com as das pessoas que viviam na sociedade disciplinar e aí observamos que em relação a elas parecemos muito mais senhores das nossas ações.
A sociedade disciplinar é aquela sociedade industrial do século XIX e começo do século XX. Se você já viu algum filme que falava do surgimento das linhas de produção, das grandes fábricas, da urbanização dos países, do surgimento das grandes cidades, dos edifícios, das ruas, dos veículos, das massas de operários etc., você consegue ter na cabeça uma imagem muito clara da sociedade à qual estamos nos referindo.
A sociedade disciplinar é a sociedade industrial por excelência. Nela, a indústria ocupa papel central na vida do cidadão. Mas não é a única instituição que disputa o tempo das pessoas. A sociedade industrial disciplinar é uma sociedade de trânsito, em que as pessoas transitam de lugares a outros lugares. Não parece muito diferente da nossa, mas acontece que na sociedade disciplinar cada lugar funciona com uma regra muito própria e muito estrita. Da escola para a fábrica, da fábrica para a igreja, da igreja para a casa. Todos os lugares com regras, liturgias, rituais, disciplinas e temporalidades absolutamente marcadas. Em cada um desses lugares, o cidadão tinha de se comportar de uma maneira diferente. A rua era só um espaço entre esses lugares e não havia nela a perspectiva mesmo de existência, apenas de passagem.
O controle sobre o comportamento das pessoas nesses lugares disciplinares era realizado sobretudo a partir do controle dos corpos, a partir de estratégias de enclausuramento e punições físicas. As pessoas que fugiam da lógica disciplinar eram aquelas que vagavam pelas ruas, vistas como loucas ou como não humanas. Em determinado momento, poderiam até mesmo ser institucionalizadas em manicômios para que a disciplina se impusesse. Ou a morte.
“Hoje o poder é exercido por meio de estratégias muito mais psicológicas do que físicas.”
A vida nessa sociedade disciplinar é absolutamente regrada. Hora certa de fazer tudo e jeito certo de fazer qualquer coisa. Não há espaço para a criatividade e o extravasamento. Tudo é absolutamente regulado e a transgressão é imediatamente punida.
A vida do cidadão era inteiramente moldada pelas instituições das quais ele fazia parte e ele não tinha possibilidade de se transformar e de se reinventar ao longo de sua existência. Nasceu sapateiro, morrerá sapateiro. Nasceu alfaiate, morrerá alfaiate. Nasceu padeiro, morrerá padeiro. Nasceu operário, morrerá operário (bem cedo, inclusive).
Pouco a pouco, o capitalismo foi se reinventando e a fábrica deixou de ser o centro. As estruturas disciplinares foram paulatinamente sendo substituídas, até porque a produção precisava superar a mera função de dar conta da subsistência das pessoas. Conforme se consolidou a cultura do consumo nas sociedades de um capitalismo um pouco mais amadurecido, a perspectiva de uma liberdade de escolha passou a ser vista com melhores olhos do que antes.
Assim, as estruturas disciplinares foram sendo substituídas e a vida na cidade passou a ter uma aparência de muito maior liberdade. Liberdade de movimento, de escolha, de lazer e até mesmo a possibilidade de mudar os rumos da própria vida.
Acontece que, para quem olhar mais de perto, ficará mais evidente que o fato de terem sido derrubadas as paredes das instituições disciplinares não quer dizer que o controle que elas exerciam sobre os corpos e as mentes tenha desaparecido junto com essas paredes. Pelo contrário, o controle que antes permanecia confinado nesses espaços específicos hoje não tem mais fronteiras.
De maneira que não é mais possível chegar ao lugar do controle da mesma maneira que não é mais possível sair do lugar de controle. Ao contrário de ter sido abolido, o controle apenas mudou de forma. Da forma disciplinar do passado dentro das quatro paredes para a forma ubíqua do presente, onde não há mais paredes.
Justamente pela ausência desses limites geográficos do exercício do poder sobre corpos e mentes, o formato desse poder se transformou e também se transformaram os meios pelos quais ele é exercido. Hoje o poder é exercido por meio de estratégias muito mais psicológicas do que físicas. O controle que não é mais disciplina não acontece por meio de chicotadas ou de punições físicas. O controle acontece através de circuitos sociais com significados próprios e é permeado pelos meios de comunicação.
Um olhar vigilante que garantia a nossa disciplina dentro de uma fábrica está espalhado por toda a nossa existência fora dela hoje em dia. A nossa presença nas redes sociais e nos meios de comunicação garante que sejamos expostos diariamente a uma infinitude de olhares, todos eles tão ou mais coercitivos do que o do bedel da linha de produção.
Tudo o que fazemos nos nossos aparelhos de comunicação pessoal é visto por alguém, processado, interpretado e transformado em algum tipo de estímulo que receberemos mais à frente. Somos instados a participar para existirmos, e existindo, somos observados, avaliados e interpretados incessantemente.
Mas sempre sob a impressão de agirmos na mais estrita liberdade. Sempre na impressão de sermos nós mesmos os artífices do nosso destino. Não sabendo que uma organização multinacional pode saber com uma ou duas centenas de nossos likes mais de nós do que nós mesmos. E que incontáveis agentes econômicos e sociais exploram esse conhecimento sobre nós sem que percebamos.
Assim, a sociedade de controle é uma sociedade que nos vigia ininterruptamente e que tira proveito econômico dessa vigilância. É uma sociedade que nos estimula a participar e nos exclui caso tenhamos de nos defender dos efeitos dessa participação.
É uma sociedade em que a regra é a exposição e em que o padrão é a ilusão de liberdade. De curtida em curtida vamos recebendo os estímulos para adotar estilos de vida próprios que não são nada próprios. E somos instados a nos encaixar em qualquer mundo que seja, mas sempre a partir de lógicas de divisibilidade, exposição, vigilância e consumo. Caso contrário, corremos o risco de ficarmos fora de controle.
(*) Gustavo Dainezi é comunicador pela ECA-USP, mestre e doutorando em Comunicação pela ESPM SP, relator do Comitê de Ética do Instituto Apae de São Paulo, professor e palestrante pelo Espaço Ética, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Ética, Comunicação e Consumo.