Maria Clara Dias
Universidade Federal do Rio de Janeiro-CNPq
Resumo: Este artigo defende nosso comprometimento moral com o aprimoramento de seres humanos, entendidos como sistemas funcionais complexos. Ele apresenta uma caracterização funcional dos seres humanos e, baseado nesta caracterização: (1) rejeita uma concepção rígida da natureza humana e (2) defende uma ampliação dos limites da moralidade aos animais e a alguns objetos inanimados. Minha tese é a de que somos sistemas funcionais dinâmicos, flexíveis, que se transformam e se moldam, numa tentativa de melhor se harmonizar com seu entorno e alcançar uma realização plena. Meu argumento é que uma perspectiva moral que não assuma como ponto de partida uma concepção rígida acerca da natureza humana, não pode, prima facie, negar práticas de intervenção e alterações em seres humanos, nem pode determinar de forma categórica quais intervenções promoverão, de fato, um aprimoramento dos seres humanos, em geral.
Palavras chave: aprimoramento humano; sistema funcional; comprometimento moral
Na década de setenta havia um seriado na televisão chamado O homem de seis milhões de dólares[1]. O personagem principal era um agente do serviço secreto americano que, após sofrer um grave acidente, passa por um processo de completa remodelagem, que o deixa com poderes especiais. Seus olhos biônicos tinham uma visão de raio x. Suas pernas mecânicas permitiam que ele se deslocasse numa velocidade absurdamente superior à capacidade humana etc. Enfim, ele se tornou um ser humano modificado, com poderes muito além dos de um ser humano comum. Era um cyborg, hoje diríamos um “transhumano”. O personagem era representado por Lee Majors e, na minha infância, não podia imaginar um ser humano mais perfeito.
Muitos anos mais tarde, já durante a primeira infância de minha filha, assisti a um seriado australiano chamado Meus pais são alienígenas[2]. O seriado falava da vida de dois alienígenas que chegam ao nosso planeta. Eles possuíam inúmeros poderes, com os quais os humanos sonham, mas estão longe de possuir. Para começar estes seres poderiam adquirir qualquer tipo de configuração física. Assim, decidem assumir a forma de um homem e uma mulher, para melhor experienciar a vida dos humanos na terra. E para tornar a experiência mais completa, adotam três crianças humanas. O fascinante da série, contudo, não estava exatamente nos poderes sobre-humanos do casal de alienígenas, mas no descompasso entre suas formas de olhar para o mundo e as regras sociais que tomamos como triviais. A perplexidade dos alienígenas diante de nossas convenções e a dificuldade de decifrar seu sentido revelava a fragilidade de muitas de nossas convenções sociais, e dava sentido ao sentimento que frequentemente alguns humanos vivenciam de, por assim dizer, pertencermos a outro planeta.
Mas aonde quero chegar com estas histórias? Estes dois seriados exploram duas fantasias que nós, humanos, cultivamos: (1) A fantasia de que podemos associar a nós outros sistemas, de forma a adquirirmos poderes sobre-humanos, e (2) a fantasia de que seres não-humanos podem exemplificar muitas das capacidades que possuímos e, até mesmo, realizá-las de forma superior a nós.
Quanto maior o avanço científico, mais forte se torna a nossa convicção de que o binômio homem-máquina não é mais apenas uma fantasia. Mas se isso é verdade, estaríamos agora legitimados a promover a criação destes seres transformados? Haveria um limite seguro para a conjunção homem-máquina ou para a transformação dos seres humanos? Para muitas pessoas, este seria o aspecto central do debate bioético acerca do aprimoramento humano. Tampouco parece mera fantasia a existência de outros seres que compartilham os aspectos mais relevantes da forma de vida que consideramos humana. Se isso também for verdade, deveremos então repensar nossas atitudes perante tais seres? Esta é já uma questão que nos retira de uma certa zona de conforto e que costumeiramente preferimos deixar de lado.
Neste artigo, pretendo sugerir uma resposta a estas duas questões. Para tal, pretendo, em primeiro lugar, analisar alguns pressupostos da discussão acerca do aprimoramento humano que, em linhas gerais, suponho equivocados. Em seguida, pretendo realizar uma análise crítica específica acerca da questão de um suposto “aprimoramento moral“ de seres humanos. Finda esta etapa, pretendo discutir a segunda questão e propor uma redefinição dos limites da nossa comunidade moral.
A natureza Humana: platitudes e equívocos
Os avanços tecnológicos obtidos pelos seres humanos nas últimas décadas têm causado um grande impacto na mídia. Esta parece ser uma das razões pela qual a discussão acerca do aprimoramento humano tem sido alvo de destaque nas discussões filosóficas, mais particularmente, na ética. No cenário internacional, o tema tem mobilizado grandes personalidades e, também, muito dinheiro, aplicado a pesquisas, workshops, publicações etc. Em outros artigos, apresentei os aspectos filosoficamente mais relevantes deste debate, tomando por base os argumentos apresentados por Bioconservadores e Transhumanistas (Dias e Vilaça, 2010; 2013). Nesta seção, pretendo apenas destacar o que considero ser os principais equívocos desta polêmica.
O título de Bioconservadores reúne aqueles que de alguma maneira acreditam na existência de uma natureza humana, cuja essência, frequentemente associada à racionalidade e autonomia, deveria seria ser protegida e preservada. Ao núcleo duro desta essência propriamente humana é atribuída nossa autocompreensão enquanto seres de uma espécie e a determinação de nossa relação para com demais indivíduos. Guardando as devidas diferenças, esta é a perspectiva de autores como Habermas (Habermas, 2004), Kass (Kass, 2002; 2003) e Fukuyama (Fukuyama, 2003) e Sandel (Sandel, 2007).
“Quanto maior o avanço científico, mais forte se torna a nossa convicção de que o binômio homem-máquina não é mais apenas uma fantasia.”
O grupo dos Transhumanistas, por sua vez, reúne aqueles que apostam no uso da tecnologia para modificar e aperfeiçoar o humano, dando origem, assim, ao “transhumano“. O “transhumano” seria um estágio intermediário entre o humano e o pós-humano, caracterizado por alterações significativas do humano, gerando seres com características não-humanas, no vocabulário de Savulescu (Savuescu, 2009), quimeras ou cyborgs (Bostrom, 2003). Já o “pós-humano” caracterizaria seres originalmente “evoluídos” ou desenvolvidos a partir de seres humanos, mas significativamente diferentes, de tal modo que, em todos os aspectos relevantes, já não poderiam ser identificados como “humanos”(Bostrom, 2003).
Para os Bioconservadores, o aprimoramento seria moralmente condenável por alterar ou destruir a nossa natureza. Tranhumanistas defendem o aprimoramento como parte de uma aposta em um mundo pós-humano, onde seres, já não mais essencialmente humanos, alcançaríam uma qualidade de vida superior, livres das amarras impostas por nossa natureza, enquanto seres humanos. De ambos os lados há, assim, uma certa concepção do que seja a natureza humana, natureza esta que o aprimoramento transformaria e, para o bem ou para o mal, destruiria. Meu diagnóstico é que aqui encontramos uma falsa premissa que de alguma forma vicia o debate sobre o aprimoramento. Para prosseguir, proponho então que abandonemos a crença em uma natureza humana fixa, imutável. Em contrapartida, pretendo defender a tese de que somos sistemas funcionais dinâmicos, flexíveis, que se transformam e se moldam, numa tentativa de melhor se harmonizar com seu entorno e alcançar uma realização plena.
Nós: sistemas funcionais
A caracterização de indivíduos como sistemas funcionais é própria a uma forma de individuação que pretende dissolver uma série de impasses gerados a partir de uma concepção dualista do que somos. O dualismo em sua versão tradicional, o dualismo ontológico, concebe os seres humanos como um composto de dois tipos de substâncias: uma substância pesante, uma mente, e uma substância física, um corpo.[3] Entendidos desta maneira, seria difícil justificar a consciência subjetiva que temos de nossa própria unidade e as razões pelas quais justificamos nossa forma de atuar no mundo. Acredito, por exemplo, que as diversas partes que compõem o meu corpo se movimentam em uma certa direção, porque eu acredito e desejo certas coisas. Acredito também que minhas pernas, meu sistema respiratório, assim como minha memória, minhas crenças e desejos, fazem parte de um todo integrado que me constitui enquanto um indivíduo. A resposta funcionalista ao problema da interação entre o mental e o físico busca resgatar esta crença bastante trivial de que somos um todo integrado.
De acordo com a perspectiva funcionalista, a forma adequada de individuar uma entidade é por recurso a suas propriedades funcionais. Desta forma o funcionalismo resgata também a nossa convicção de que alguns processos mentais podem ser realizados em estruturas com propriedades físicas distintas. Eles seriam multiplamente realizáveis. Ao identificar um evento mental por suas propriedades funcionais, estaríamos, assim, reconhecendo o caráter necessário de um componente material, porém não reduzindo o evento em questão às propriedades físicas da estrutura material que o realiza.
A forma mais usual de exemplificar a concepção funcional é através da construção de modelos ou máquinas programadas para realizar um tipo de funcionamento específico. Neste caso, as ilustrações vão desde máquinas mais simples como as que nos oferecem refrigerantes mediante a introdução de moedas de um determinado valor, até as máquinas conexionistas de tipo PDP (Parallel Distribution Process) ou redes neurais. Parece evidente que a complexidade das funções que usualmente realizamos exige que sejamos exemplificados por modelos flexíveis e bastante complexos. Complexos talvez o suficiente para não sermos, ainda, capazes de descrevê-los. Neste sentido a proposta funcionalista parece vulnerável a uma objeção de fato, mas, se estivermos corretos, poderá mostrar que, em princípio, nada impede que esta seja a forma mais adequada de descrever o que somos.
Seres humanos, segundo uma descrição funcional, poderiam, assim, operar como um programa flexível composto de vários módulos. No primeiro módulo estaria um scanner, responsável pela recepção dos inputs. A partir daí, podemos imaginar vários módulos entre os quais um módulo avaliador, responsável pela seleção das informações que chegaram à etapa final, qual seja, a produção de um comportamento específico. A peculiaridade deste tipo de programa estaria na sua capacidade de aprender, ou seja, de alterar o produto em função de um novo input que incluiria os efeitos produzidos pelo comportamento do agente nas etapas anteriores. Em outras palavras, o output gerado promoveria respostas externas que, por sua vez, seriam introduzidas no input e avaliadas pelo programa de forma a fornecer um novo resultado. É deste modo que um modelo programado para reconhecer letras, como o que é utilizado com sucesso nos correios, altera, ou melhor, aprimora, sua performace, na medida em que lhe são oferecidas grafias variadas de uma mesma letra e que o programador responde negativa ou positivamente ao seu reconhecimento ou não de uma letra. Tais modelos são capazes de reordenar os seus dados de forma a passar a reconhecer características anteriormente ignoradas.
Com base na análise funcional de modelos com programa flexível passaríamos, então, a atender algumas das principais características do modelo humano como, por exemplo, nossa capacidade de aprender a partir das experiências vividas e de responder de forma diferenciada, inédita, a nova situações. O processo de avaliação dos dados informacionais obtidos e a resposta consecutiva caracterizam o que julgo compreendermos como a capacidade de deliberar. Neste sentido, nosso tão proclamado poder de deliberação nada mais expressaria do que a totalidade do processo que envolve a verificação, seleção e avaliação de informações e, finalmente, uma resposta comportamental. Do mesmo modo, podemos ainda descrever o que chamamos de liberdade como uma capacidade de conduzir respostas/ações, com base numa avaliação e ponderação das diversas informações obtidas.
Seres humanos e máquinas
Se esta descrição for, realmente, sustentável, teríamos então que enfrentar suas consequências. Já de partida, vemos esmaecer a ideia de uma base fixa, imutável, detentora do que imaginamos ser a nossa essência propriamente humana. A pergunta acerca da identidade de cada ser deverá ser respondida por referência a uma rede de processos que envolve a performance de distintas funções, algumas das quais usualmente descritas através de um vocabulário mentalista. A esta rede chamaremos de Self. O Self, assim entendido, não é uma unidade transcendente que controla todo o sistema, nem uma parte específica do mesmo. Ele é uma rede ou uma conjunção de processos. Enquanto tal, ele está projetado no mundo e em constante processo de transformação. Seu campo informacional é composto de dados oriundos tanto dos limites internos, quanto externos ao próprio corpo. Dentro desta descrição, nossos limites tornam-se também flexíveis. Nosso Self já não pode ser identificado ao cérebro, nem delimitado pelos contornos do nosso corpo físico/biológico.
Se quisermos, por exemplo, pensar a nossa atividade cognitiva segundo o modelo funcional da relação inputs/outputs e estados mentais diversos, onde deveríamos estabelecer os limites do processo cognitivo? Segundo a perspectiva funcional a cognição não poderia ser identificada como uma etapa específica do processo, um estado mental isolado, por exemplo, mas ela seria todo o processo. Neste caso, ela envolveria necessariamente uma complexa rede de inputs, internos e externos, e outputs. Os elementos que compõem o processo cognitivo fazem, assim, parte de uma estrutura dinâmica, onde os papeis desempenhados estão em constante permuta. Registros deixados em livros, diários, computadores e no nosso entorno ambiental ocupam um papel tão fundamental em nosso set informacional, quanto nossas sensações, traços de memórias e as operações realizadas no nosso cérebro.
O papel desempenhado por objetos localizados fora dos limites do nosso corpo, ou ainda, por artefatos, no nosso processo cognitivo, talvez explique porque nosso raciocínio se vê debilitado quando perdemos nossa agenda ou as informações que guardamos em nossos computadores. Pode explicar também a falência cognitiva de idosos que são afastados do lugar, pessoas ou objetos que lhes eram familiares. Segundo esta visão, nosso processo cognitivo se estende, necessariamente, para além do nosso cérebro e dos limites do nosso corpo, pois ele envolve, como parte constitutiva de seu mecanismo, os inputs que compõem o conteúdo de nossos pensamentos e, o que em vocabulário kantiano chamaríamos, a síntese dos mesmos através de conceitos. A linguagem é ela mesma um artefato que incorporamos à nossa estrutura cognitiva e que assume o papel de projetar no mundo parte de nossos conteúdos mentais. A mente ou o Self, entidade narrativa à qual reportamos não apenas nossa cognição, mas a totalidade de nossos estados psicológicos, não é uma entidade que se relaciona ou representa o mundo, mas sim uma rede de processos no mundo.
Se estivermos corretos e a melhor forma de descrever a nossa natureza for realmente por recurso a uma entidade ficcional que fagocita o seu entorno, incorporando a si seu set informacional – uma criatura amorfa, em constante transformação –, então teremos que abandonar o apelo à natureza humana, como forma de vedar práticas que julgamos moralmente condenáveis. A ausência de uma natureza humana, com fragilidades e habilidades plenamente identificáveis, faz também da superação do humano uma hipótese vazia. Não conhecemos limites para nossa atividade fagocitária, nosso único limite é o mundo, que, como nós, é também dinâmico e amorfo.
Mas se já não dispomos de uma noção rígida do que seja a natureza humana, como deveremos nos posicionar no debate moral acerca do aprimoramento humano? Defendo aqui que uma perspectiva moral que não assuma como premissa ou ponto de partida uma concepção rígida acerca da natureza humana, (1) não pode, prima facie, negar práticas de intervenção e alterações em criaturas humanas, (2) nem pode determinar de forma categórica quais intervenções promoverão, de fato, um aprimoramento dos seres humanos, em geral.
“A ausência de uma natureza humana, com fragilidades e habilidades plenamente identificáveis, faz também da superação do humano uma hipótese vazia.”
Terapia e aprimoramento
Esta mesma perspectiva terá também consequências sobre outro aspecto bastante caro à polêmica entre Bioconservadores e Transhumanistas. Trata-se da suposta distinção entre práticas de intervenção ditas terapêuticas, ou seja, que são realizadas para suprir uma suposta deficiência, e práticas de aprimoramento, entendidas como uma modificação na constituição biológica ou psicológica de um indivíduo, com o objetivo de promover seus próprios funcionamentos ou até mesmo criar habilidades que ampliem sua qualidade de vida. Ora, se não dispomos de um conceito rígido de natureza humana, a própria noção do que seja uma deficiência torna-se relativa à relação do indivíduo com o seu entorno.
Um indivíduo que satisfaça os padrões cognitivos vigentes, sob o ponto de vista biológico, pode apresentar um deficit comportamental, sob o ponto de vista social, a luz dos padrões de uma determinada sociedade. Neste caso, uma prática de intervenção seria dita terapêutica ou de aprimoramento? Podemos também imaginar o caso de indivíduos com deficiências biológicas, porém totalmente adaptados e realizados socialmente. Estaríamos agora justificados em proceder a algum tipo de intervenção?
Enfim, junto com uma noção estática de natureza humana, perdemos também o limite entre o normal e o patológico, entre a intervenção terapêutica e o aprimoramento. Neste caso, nosso compromisso moral deverá ser com o aprimoramento dos funcionamentos que tornam possível nossa realização pessoal, o que quer que, em cada caso, isso signifique.
Um dilema ético real
Se pudermos realmente nos compreender desta maneira, a busca por aprimoramente não parece ser uma novidade, ou um tema sobre o qual possamos nos posicionar como sendo contra ou a favor. Ela faz parte da nossa forma de estar e nos realizarmos no mundo. Não corremos o risco de nos tornarmos cyborgs porque, em verdade, já sempre fomos uma entidade que transbordou seus limites corporais e projetou-se no mundo e, neste sentido, já nunca tivemos como definir um eu profundo, diverso dos outros eus.
Haveria ainda algum problema real, no âmbito da moralidade, pertinente à temática do aprimoramento humano? Parece-me parece evidente que sim, mas ele não diz respeito exclusivamente ao aprimoramento que envolve recursos biotecnológicos. Ao meu ver, o problema real que enfrentamos no âmbito moral é o da delimitação dos concernidos e o do estabelecimento de uma hierarquia entre os diversos indivíduos. Se a tecnologia hoje disponível para aprimorar nossos funcionamentos for considerada apenas como mais um dentre os bem ofertados no mercado, para os que puderem arcar com os seus custos, estaremos então aumentando o fosso entre os que podem quase tudo e os que quase nada podem.
Como já disse, este problema não diz respeito apenas aos recursos biotecnológicos. Quando promovemos um sistema educacional privado em detrimento de um sistema gratuito, por conseguinte, acessível a uma população de baixa renda, estamos ampliando o fosso existente entre os diferentes estratos sociais e promovendo um tratamento desigual que beneficia o bom funcionamento de alguns indivíduos, em detrimento de outros. Para que o tema do aprimoramento não gere discrepâncias de tratamento, ferindo assim um princípio moral de igual consideração, precisamos saber administrar estes novos recursos e submeter seu controle e distribuição a uma agenda moral. Definir esta agenda é um trabalho coletivo e que supõe, ao mesmo tempo, um compromisso com a própria moralidade e, mais especificamente, como uma concepção moral igualitária e universalista.
Mas como esperar que esse compromisso seja pactuado num mundo onde a moralidade passa ao largo de grande parte dos indivíduos e das instituições criadas? Para que o aprimoramento humano seja bem conduzido não deveríamos promover, antes, um aprimoramento moral? Com certeza. Talvez esta seja a razão pela qual, no âmbito do aprimoramento, muitos autores tenham voltado suas pesquisas para a investigação de formas de aprimoramento moral. Antes de concluir esta etapa e, finalmente, passar a segunda questão inicialmente mencionada, a dos limites da nossa comunidade moral, pretendo tecer alguns comentários sobre o aprimoramento moral.
O aprimoramento moral: entre dúvidas e certezas
Gostaria de retornar agora ao seriado Meus pais são alienígenas. Como disse, o casal de alienígenas apresentava uma enorme dificuldade para decifrar o sentido de muitas das mais triviais convenções humanas. O mais interessante é que seus sentimentos eram genuínos, o que fazia com que também os telespectadores passassem a suspeitar das convenções em questão. Embora seja uma obra de ficção, este seriado revelava a dificuldade de atribuirmos a nossas convenções um sentido atemporal e transcultural. Em contrapartida, ele revelava também a possibilidade de sentimentos compartilhados e capazes de construir uma vida em comum.
Minha maior preocupação no que tange ao aprimoramento moral é a suspeita de que efetivamente não podemos saber o que será o melhor para sociedades futuras. Entendo a questão da moralidade como uma indagação acerca da boa vida: da vida que valoramos ou aspiramos viver. Neste sentido a moralidade envolve valores. Valores não são entidades transcendentes, mas sim o peso atribuído aos diversos elementos de nosso set informacional, após realizado o processo de avaliação e ponderação entre nossos inputs nossas crenças e desejos. O que fixamos como o conteúdo de nossas normas morais corresponde a exigências pactuadas, afim de que possamos satisfazer certas demandas e promover nossa plena realização. Se anteriormente abandonamos a crença em uma natureza humana fixa, precisamos agora também admitir que nossas demandas são variáveis. Elas variam de acordo com as condições impostas pelo nosso entorno e pela constituição biológica, pelo desenho de nossa psique e pelo que projetamos como sendo a nossa concepção de vida realizada.
Se minha descrição da moralidade puder ser aceita, então qualquer forma de aprimoramento moral deverá levar em conta a quase impossibilidade de fixarmos conteúdos normativos. Precisamos reconhecer os limites de nossa própria compreensão acerca do bem e do mal, limites estes estabelecidos pela nossa inserção espaciotemporal no mundo. O bem e o mal não são conceitos absolutos, mas sim relativos ao que promove ou degenera nossa realização. Novos tempos trazem consigo novas ameaças, por conseguinte, novas demandas que exigem formas próprias de satisfação. O que, sim, preservamos da moralidade através dos tempos é sua finalidade última, a de promover o nosso florescimento, o que quer que isso signifique.
O que temo no projeto de aprimoramento moral é o filósofo de gabinete que acredita saber o que é o melhor em sentido atemporal, sem sequer saber o que se passa em seu entorno atual. As sociedades humanas vangloriaram a autonomia e a racionalidade durante séculos, à revelia dos inúmeros indivíduos, humanos ou não, que jamais exerceriam tais capacidades e se enquadrariam no perfil adequado a um agente moral. O risco do projeto de aprimoramento moral é o mesmo do projeto geral de aprimoramento que julga ser capaz de identificar exatamente onde devemos intervir, a fim de aprimorar. O aprimoramento não pode corresponder a um programa fixo, uniforme e genérico.
Sabemos que muitos pais e educadores buscam hoje substancias que ampliem a capacidade de concentração de seus filhos e alunos. Longe dos fármacos, as escolas se dedicam ao raciocínio lógico, matemático, e praticamente abandonam outras formas de apreender e estar no mundo, como as formas de expressão artísticas. Como podemos justificar a escolha por ampliarmos o grau de concentração e o raciocínio lógico de nossos jovens, em detrimento do investimento em outras capacidades, que certamente os habilitariam ao exercício de atividades distinta, talvez muito mais compatíveis com sua forma própria de realização? Por que um mundo de cientistas e filósofos seria necessariamente melhor que mundo de sambistas ou de camponeses analfabetos?
Este mesmo tipo de questão pode ser também colocada, no que tange aos nossos sentimentos ou virtudes morais. Tomemos como exemplo uma capacidade ou sentimento bastante abrangente, frequentemente associado à conduta moral, como a empatia. Como podemos garantir que a promoção de indivíduos mais empáticos realmente nos conduza a um mundo moralmente melhor? Muitos podem, como eu, tomando como referência nosso mundo atual, acreditar que sim. Podem acreditar que ao ampliarmos nossa percepção do outro, estaremos mais aptos a compreender e respeitar suas demandas. Em outros textos, defendi a sensibilização através das artes como uma forma de promover este tipo de aprimoramento (Dias, 2015; 2016). Considero que seja nosso papel e, até mesmo nosso dever, implementar os diversos mecanismos que, no nosso tempo, acreditamos promover um aprimoramento moral. Isso, contudo, não elimina o risco de estarmos cometendo um grande erro, aos olhos das futuras gerações. Em nossa defesa podemos apenas alegar ter agido de acordo com nossas melhores convicções. Porém, insisto, a cautela, aqui, deve ser não apenas um imperativo prudencial, mas um antídoto contra a arrogância e presunção que perpassam toda a história da humanidade. A lição dos alienígenas talvez deva ser incorporada a nossas respostas futuras, fazendo como que revisitemos o sentido de nossas normas sociais, e dentre elas, sobretudo, as traçadas por uma concepção que podemos vir a identificar como bastante restritiva da moralidade.
Nós e os outros: entre agentes e concernidos
Minha proposta de redefinição do que somos e nossa descrição como sistemas funcionais visa, sobretudo, ampliar a esfera da moralidade. Com isso finalmente chegamos à segunda questão mencionada no início deste artigo: Qual atitude moral devemos adotar com relação aos seres que não reconhecemos como humanos, muito embora, em diversos aspectos, eles possam se assemelhar a nós?
Em outros textos, defendi como foco da moralidade os diversos sistemas funcionais (Dias, 2016). Desta maneira traduzi o princípio universal do respeito como uma demanda por respeito ou consideração aos funcionamentos básicos dos diversos sistemas e, como fim último da moralidade, o florescimento dos mesmos. Ao introduzir esta visão, pretendia romper com uma concepção de moralidade estruturada segundo o paradigma contractualista, onde o grupo dos indivíduos identificados como agentes morais é também o grupo dos concernidos. Em uma concepção deste tipo, pautada no exercício da racionalidade e da autonomia das possíveis partes integrantes de uma situação contratual, não haveria espaço para o reconhecimento moral de indivíduos que jamais seriam capazes de ocupar o papel de agente moral. Procurei mostrar que este seria o caso de muitos seres da espécie humana que, por razões das mais diversas – razões que nos reportam tanto à sua constituição biológica, quanto a fatores de ordem socioeconômica ou fatalidades que obstruam o bom exercício de seus funcionamentos – jamais exercerão, de forma satisfatória, a racionalidade e a autonomia exigidas. Ao tomar como exemplo este grupo, nada pequeno, de seres humanos, pretendia apontar uma incongruência em nossas atitudes morais corriqueiras e, ao tentar corrigi-la, finalmente promover uma ampliação dos limites da nossa comunidade moral.
Servi-me, assim, de uma convicção amplamente compartilhada: a crença de que usualmente não excluímos como objeto de nossa consideração moral os seres humanos nada ou pouco racionais e autônomos. Se de fato pensamos assim, isso significa que já estamos dispostos a distinguir entre os agentes morais – aqueles que tomam atitudes morais e são moralmente responsáveis por elas – e os que chamo concernidos morais, ou seja, os seres que incorporamos à nossa comunidade moral e que julgamos objeto de nossa consideração moral, à revelia da consciência que possam ter sobre isso. Este passo, acrescido da redefinição anteriormente proposta do que somos, gera, então, uma concepção moral que, tendo como foco os sistemas funcionais, incorpora seres humanos, animais não-humanos, objetos inanimados e até mesmo o meio-ambiente.
Embora eu não pretenda desenvolver este tema aqui, minha tese é a de que objetos inanimados e o meio-ambiente podem ser compreendidos como elementos constitutivos no nosso próprio Self. Como defendi anteriormente, nosso Self não tem como limite o cérebro ou nossa estrutura corporal. Ele incorpora em si objetos e se projeta no mundo. Muitos destes objetos são sistemas acoplados que nos permitem realizar uma série de tarefas e potencializar nossos funcionamentos. Eles abrangem desde óculos, aparelhos dentários, aparelhos auditivos, bengalas e pernas mecânicas até celulares, microcomputadores etc.
Sob o ponto de vista moral considero que uma das principais vantagens desta visão é que ela retira o estigma que muitos indivíduos carregam de serem pessoas com deficiências, por necessitarem de um complemento artificial ou mecânico. Todos os seres humanos possuem sistemas acoplados. Todos possuem objetos que incorporaram como parte constitutiva de sua identidade narrativa. Alguns de nós, contudo, se redem a um processo de autoilusão que faz com nos consideremos criaturas genuinamente puras, pertencentes a uma espécie única, que curiosamente se define por oposição aos seres que julgamos pertencer a uma categoria outra, também, frequentemente considerada, hierarquicamente inferior.
“Nosso Self não tem como limite o cérebro ou nossa estrutura corporal. Ele incorpora em si objetos e se projeta no mundo.”
Se tais considerações forem razoáveis, nosso dever moral deverá abarcar sistemas funcionais diversos, sejam eles humanos ou não. Através do binômio homem-máquina buscamos, agora, apenas uma caracterização mais adequada do que somos, que nos afasta tanto de uma matriz religiosa, como da matriz biológica tradicional.[4] O “fantasma da máquina” que adquire características humanas deixa de ser um problema moral relevante. Isso porque, embora uma forma de vida moral seja algo propriamente humano e sejam alguns seres humanos os agentes morais por excelência, somos nós, agentes morais, que ao assumir uma certa concepção moral, assumimos, simultaneamente, um compromisso como o florescimento de outros sistemas funcionais, sejam eles humanos ou não.
Conclusão
Para discutir a questão do aprimoramento humano, em geral, e do aprimoramento moral, em particular, procurei desfazer alguns equívocos inerentes a nossa autocompreesão. Em primeiro lugar, abandonei qualquer concepção do que somos que nos reporte a uma essência fixa dos seres humanos. Defendi, então, uma descrição funcional que nos caracteriza como estruturas funcionais flexíveis, criaturas que incorporam a si outros sistemas e objetos de forma a melhor realizar seus funcionamentos. Em seguida defini a própria moralidade como parte da busca destes seres por sua auto-realização. Desta forma, apontei para o aspecto essencialmente dinâmico de nossas demandas morais. Inserindo a moralidade no universo de alternativas dos seres humanos, tracei uma distinção entre os seres que assumem uma forma de vida moral e, por conseguinte, precisam arcar com as consequências desta escolha e aqueles indivíduos que incorporamos como objeto de nossa consideração moral, à revelia da consciência que tenham acerca do que isso signifique e, por conseguinte, do endosso que possam dar a nosso universo de práticas morais.
O aprimoramento humano foi redefinido, então, como parte desta nossa incessante tentativa de melhor estarmos e atuarmos no mundo. Desta forma, tentei apenas destacar dois grandes riscos para o tema: (1) o risco de projetarmos nos demais seres, incluindo as futuras gerações, os padrões inerentes ao nosso universo valorativo presente, fruto de um tempo e uma cultura específica e (2) o risco de ampliarmos o fosso das desigualdades existente, promovendo relações de poder desiguais e uma possível hierarquia entre os diversos indivíduos, a partir da disponibilização seletiva de mecanismo de aprimoramento.
Para evitar tais consequências nocivas a uma perspectiva moral que se quer universal e igualitária, precisamos, por um lado, estar atentos à nossa cegueira e arrogância intelectual e, por outro, garantir um pacto coletivo de promoção do igual respeito a todos os indivíduos. Pacto este que deve vir acompanhado de protocolos internacionalmente elaborados e firmados pelas instâncias legais dos diversos países que o integram.
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[1] Série de televisão norte-americana produzida e exibida entre 1974 a 1978 pelo canal ABC.
[2] Série de televisão australiana produzida pela CITV, 1999.
[3] O dualismo ontológico tradicional é ilustrado de forma exemplar por Descartes nas Meditações.
[4] Não gostaria de excluir a possibilidade de encontramos no cerne da própria Biologia autores que possivelmente endossem a concepção aqui defendida. Humberto Maturana, por exemplo, poderia ser um deles.