Por Homero Santiago

Em tempos de CPI, muita polêmica corre por causa da declaração de Eduardo Pazuello em que, ainda ministro da Saúde e ao lado do presidente da República, justificava assim seus atos: “É simples assim: um manda e o outro obedece”. Não vamos discutir o mérito da questão no varejo (fez isso ou não fez aquilo). Tomemos a tirada do general na medida em que exprime uma conjugação de dever de obediência e senso de hierarquia que torna “normal” e até meritória a correlação entre a ordem recebida e a sua execução — “ordem dada, ordem cumprida”, alguém da caserna diz. É essa simplicidade que não é “simples assim”.

Compliquemos um pouco as coisas, recorrendo a um ramo da psicologia social que estuda o que se denomina “psicologia da obediência”. Por um lado, o ato de obedecer é um fato social normal. Os pais esperam obediência da parte dos filhos, o chefe de uma repartição industrial espera obediência dos subordinados, um Estado espera obediência às leis, e assim por diante. A generalizada desobediência talvez instalasse o caos no cotidiano. O problema advém nos casos em que o cumprimento das ordens faz do sujeito obediente um joguete e até cúmplice de crimes do mandatário. Um exemplo clássico é o dos campos de concentração nazistas. Facilmente concebemos um grupo pequeno de altos oficiais diabólicos a matar em escala industrial; em troca, é muito difícil aceitar que todos que obedientemente executaram ordens superiores e perpetraram atos abomináveis fossem igualmente maldosos. Os guardas, os carrascos, os que manejavam fornos crematórios não seriam pessoas “normais” que apenas cumpriam ordens, “normalmente”, isto é, da mesma maneira que nós cumprimos ordens rotineiramente? Verdade seja dita, salvo engano, jamais Hitler matou pelas próprias mãos. Ele tinha as mãos limpas, as mãos estavam com as pessoas “normais”.

Intrigado pela questão, o psicólogo norte-americano Stanley Milgram realizou em 1961 um experimento que ficou célebre (traduzido no Brasil em 1983: Obediência à autoridade: uma visão experimental). Ele publicou num jornal uma chamada de voluntários para um estudo acerca da influência do castigo físico no aprendizado. Em laboratório, o voluntário desempenha o papel de “professor” e, de uma cabine, aplica choques elétricos num “aluno” a cada falha deste em responder a um questionário. De acordo com o aumento dos erros, as descargas aumentam, podendo alcançar o limite de 450 volts; tal descarga, como é alertado o “professor”, causa muita dor e é perigosa.

Só que tudo não passa de uma grande armação. O estudo não é sobre o aprendizado. O objetivo real de Milgram é investigar “como um homem se comporta quando recebe a ordem de uma autoridade legítima para agir contra uma terceira pessoa”. No caso, a autoridade é a do pesquisador que, superior, ordena ao “professor” a aplicação do castigo e assume toda a responsabilidade; a vítima é o “aluno”, na verdade um ator que, embora não receba descargas, simula expressões de dor e desespero.

O resultado surpreendente foi que um número considerável de pessoas (dentre os mais de mil sujeitos do experimento) chegou ao limite de descargas que provocavam dor intensa e podiam levar à morte. Posteriormente questionadas, explicaram ter agido assim porque haviam concordado em fazê-lo e o superior que dava as ordens assumira a responsabilidade por todas as consequências, eximindo-as de culpa. Ou seja, certo dever de obediência “normal” na vida rotineira (aquele de qualquer funcionário que realiza as ordens do chefe) tornava possível que pessoas “normais” cometessem atos “anormais”, no caso, a tortura. Daí uma conclusão fundamental de Milgram: um fenômeno como o dos campos de concentração nazistas pode explicar-se, entre outras coisas, por uma estrutura social comum, o dever de obediência.

Porém, nem todos simplesmente obedeceram. Algumas pessoas decidiram desobedecer e abandonar o experimento. Indagadas por que agiram assim, alegaram também um dever de obediência, mas não aos superiores, e sim às suas próprias convicções. Sem negar completamente a obediência, nela reconheciam limites e achavam legítimo desobedecer quando o cumprimento de uma ordem implica executar uma atrocidade, no caso, torturar. Em vez de só obedecerem, e esta foi a diferença crucial detectada entre os dois grupos, eles refletiam sobre as ordens recebidas antes de cumpri-las. Ou seja, entre a ordem e a execução, surgia o pensar.

O que é perturbador no experimento de Milgram é perceber que, no fundo, Pazuello tem certa razão. Obedecer é mais “simples” que desobedecer; e por isso mesmo qualquer um de nós pode tornar-se, desavisadamente e por mero cumprimento do dever de obediência, agente ou cúmplice de atos recrimináveis. A obediência é fácil porque exige apenas dar curso ao que de nós se espera; desobedecer, pelo contrário, exige a coragem de realizar um difícil trabalho de pensamento. Ao contrário do ditado “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, a verdade talvez seja que obedece, pelo menos sem nenhuma deliberação, quem teve o juízo de tal modo embotado que ficou incapaz de pensar.


Homero Santiago
Livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde é professor de História da Filosofia Moderna. Possui graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo.

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