Por Vitaly L. Ginzburg
Instituto de Física P. N. Lebedev
Moscou|Rússia

Tradução: Roberto da Silva
Diagramação e adaptação: Ronaldo Campos

Meus anos na escola coincidiram com o que foi talvez o período mais desafortunado da história da educação secundária soviética. Do velho colégio (ginásio,
etc.) sobraram edifícios. No entanto, havia vários professores antigos e supostamente talentosos. O caos reinava sobre o resto. Em 1931, eu terminei a escola em um período de 7 anos, tendo havido um “corte” devido à exigência instituída naquele época de se aprender uma profissão proletária em uma fábrica. Finalmente, alguns anos depois, este sistema decadente foi trocado por outro em que se ficava 10, e mais tarde 11, anos na escola.

A ausência da atmosfera “educacional” adequada, na família em particular, teve o efeito de dar-me a impressão de que eu ganhei pouco no colégio. No entanto, o interesse pela Física apareceu mesmo nesses anos e, com força, embora eu mesmo não saiba o porquê. Eu gostava do livro “Fizika Nashikh Dnei” (A Física dos Nossos Dias) de O. D. Khvolson, que eu li ainda na escola ou logo depois de terminar a graduação, eu acho. Enfim, eu nunca hesitei em escolher a Física, mas não me lembro nem do professor, nem dos livros-texto.

Terminando a escola, de algum jeito, eu consegui um trabalho de assistente de laboratório no Instituto Noturno de Fabricação de Máquinas de Moscou. Inicialmente, eu estava “em treinamento” no laboratório A. A. Bochvar do Instituto de Metalurgia Não-ferrosa e então eu me encontrei no Laboratório de Raios X. Os chefes eram E. F. Bakhmetev e N. K. Kozhina (por algum tempo também Ya. P. Silisskii). O mais poderoso era Venya Tsukerman. Leva Al´tshuler também era de lá. Nós três tínhamos uma relação amigável e trabalhávamos juntos. Claro, eu estava em terceiro lugar: os colegas eram três anos mais velhos e sabiam mais. Ven´ka chama-nos de “os 3 V´s”: V de Venya, Vitya e Vladmirovich (este era o patronímico de Al´tshuler).

O trabalho no laboratório foi benéfico para mim: ensinou-me versatilidade (seguindo o exemplo de Venya) e habilidades experimentais. Em Física, para não falar de matemática, eu não tive progresso significativo. O ano de 1933 viu a primeira matrícula “livre” (i.e. “competitiva” em vez de por indicação) da Universidade Estatal de Moscou (MGU) e eu decidi entrar no Departamento de Física. Em três meses eu passei formalmente pelos oitavo, nono e décimo anos de escola, mas estou convencido de que a falta de uma escola boa, regular, teve um efeito adverso sobre mim. Enquanto um garoto na escola resolve, vamos dizer, 100 ou 1.000 problemas de trigonometria, logaritmos, etc., o número que eu resolvia era 10, ou 100 vezes menor. O mesmo se pode dizer de aritmética. E isto me marcou para sempre: eu faço cálculos mal, lentamente, com esforço, falta automação. Eu sempre temi e detestei cálculos. Claro, por trás disso está a falta de habilidade em Matemática (em comparação com as habilidades correspondentes da maioria esmagadora dos colegas teóricos). Mas esta é precisamente a razão pela qual a falta de treinamento teve um efeito tão pronunciado.

Claro que a falta de uma escola regular também foi adversa em outros aspectos. Com cerca de 30 anos, eu li pela primeira vez “Byloe i Dumy” (O passado e Meditação) e muitas outras obras literárias (no entanto, não tenho certeza se foi uma desvantagem). Muito mais significativa é a deficiência na “Língua Russa”. Quando eu estava no meu segundo ano no MGU, todos nós tínhamos ditados e eu cometia oito erros levando conceito “insatisfatório”. Mesmo agora eu escrevo com erros. Os erros gramaticais não são tão significativos quanto a habilidade de escrever, o domínio de estilo e de linguagem. Minha linguagem é de certa forma pobre e minhas frases freqüentemente não são muito literárias. Nessa linha de pensamento, eu me lembro da minha conversa com G. S. Gorelik. Ele tinha a habilidade de escrever bem, e para minha pergunta – O que o ajuda a escrever tão bem? – ele respondeu com uma pergunta – Quantas vezes por semana você fazia redações na escola? – Eu respondi – Algo como uma vez por semana ou uma vez a cada duas semanas, não me lembro. – G. S. comentou que ele estudou na Suíça e escrevia redações todos os dias. É por isso que eu ainda tenho algumas lacunas nos conhecimentos que deveria ter adquirido na escola. Infelizmente, eu também não conheço línguas estrangeiras, embora, graças a Deus, eu tenha de certa forma dominado o Inglês (mas eu só sei falar, embora com erros, e fazer relatórios, ao passo que sou quase incapaz de escrever sozinho sem que alguém corrija). Escrevo tudo isto porque definitivamente cheguei à conclusão de que uma pessoa precisa de muitas coisas para trabalhar de verdade e conseguir sucesso e satisfação. Não conhecer idiomas é, francamente, uma desgraça, para não falar no prejuízo para a carreira. Os europeus não têm este tipo de problema. Qualquer físico holandês sabe Inglês bem e provavelmente também sabe Alemão e Francês: tendo facilidade com línguas, uma pessoa pode dominar uma língua mesmo sem estudá-la na escola – se tiver começado desde criança e assim por diante. Mas e se uma pessoa não tiver habilidades lingüísticas? Estas são habilidades específicas na verdade. Eu, por exemplo, sou absolutamente incapaz de lembrar poemas e em geral não consigo saber nada de cor (como, por exemplo, um relatório). Na infância, na escola, eu provavelmente conseguiria lidar com tudo isso. Por toda minha vida lamentei não saber línguas, eu poderia saber mais sobre isto, sobre aquilo. No entanto, quando seu trabalho está progredindo e há tantas coisas interessantes nele, você vai aprender verbos ou nomes de constelações? Eu certamente nunca fui capaz de fazer isso.

No fim das contas, nenhuma instituição educacional transformaria alguém em um excelente escritor, físico ou matemático sem que ele mostrasse a aptidão correspondente. No entanto, primeiro, só as tendências não seriam suficientes. Quantas pessoas talentosas nunca “concretizaram” suas potencialidades e qual o papel que coube às deficiências na sua educação? Segundo, um bom preparo, treinamento, etc. são supostamente capazes de criar um profissional de valor a partir de uma pessoa de habilidades medianas, que, de outro modo, seria um “burro de carga”, um fracasso, não encontraria satisfação no trabalho, etc. Enfim, está tudo claro. Eu escrevo por onde sou levado pela minha caneta; e este assunto foi abordado porque eu refleti várias vezes sobre a questão das perdas em que “incorri” devido às condições desfavoráveis na escola. Claro que é impossível saber a resposta.

Por outro lado, creio eu, fui extremamente afortunado com relação a “concretizar” as minhas modestas habilidades. Mas, ainda assim, o que poderia ter sido possível se eu tivesse estudado em uma boa escola por 10 anos, sem falar no apoio “profissional” da família (não houve)? Aqui, gostaria de abordar outro assunto sobre o qual gosto de refletir freqüentemente. Veja, por exemplo, um desportista que correu, vamos dizer, uma distância de 100 m em 9,9 segundos para ser um campeão olímpico e um velocista que correu em 10,2 segundos para ser o quarto colocado, perdendo até mesmo a medalha de bronze (os números são, claro, arbitrários). Aqui, circunstâncias aleatórias podem ter dado sua contribuição: como ele tinha dormido, o quê ele tinha comido, como flexionou os pés, etc. Felizmente, na ciência este não é o caso: o que cabe ao quarto colocado é muito melhor, ele dá sua contribuição, escreve bons artigos (sabendo que o primeiro colocado escreve artigos muito bons). Mas o papel do acaso e da boa sorte ainda pode ser crítico. Isso não é assim para gigantes como Einstein, para quem a “margem de segurança” e a distância para os outros são muito grandes. Os talentos de Maxwell, Bohr, Planck, Pauli, Fermi, Heinsenberg, e Dirac também foram pouco dependentes das flutuações de sorte, idéias acidentais, etc. De Broglie, e até mesmo Schrödinger, foram, assim me parece, outra história, para não falar de numerosos ganhadores do Prêmio Nobel. M von Laue era um físico bem qualificado, mas afirmam que a idéia da difração de raios X em cristais foi uma idéia regada a cerveja (“Bieridee”). Braggs, Roentgen, Zeeman, Stark, Lenard, Josephson, Penzias e Wilson, Hewish e Ryle, Cherenkov, Basov e Prokhorov, assim como 3/4 de toda a lista foram mais resultado de golpes de sorte do que revelações “divinas”. Eu só quero enfatizar que a possibilidade de sucesso depende tanto de um golpe de sorte, quanto de uma variedade de fatores, que incluem saúde, um livro ou artigo lido na hora certa, atividade, ambição (como um estímulo) e talvez muitas outras coisas. Um assunto interessante esse.


Este artigo é de domínio público e tem por objetivo divulgar a ciência. Faz parte da coleção Algumas razões para ser um cientista que procura desmistificar e estimular o estudo da ciência — principalmente para os jovens.

Foto de Soviet Artefacts/Unsplash
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