Sérgio Praça*

Resumo: Em meio a tantas regras e avisos, existe escondida uma grande desconfiança. Vivemos em um país que estimula a defensiva constante, como se encontrássemos um engano  em cada esquina.
Mas e se não tivéssemos outra opção a não ser confiar mutuamente e acreditar no outro?

Palavras-chave: Confiança. Desconfiança. Sistema Financeiro. Sistema Político.

 

Há uma padaria em Perdizes, zona oeste de São Paulo, que parece não gostar muito de seus clientes. No andar de cima, onde há almoço por quilo, um aviso: “Proibido computadores nas mesas entre 11h e 16h”. Não querem que as mesas sejam ocupadas por quem só foi tomar café e responder e-mails. Recado entendido. Na seção de frios, um papel diz: “Peso mínimo: 100 gramas”. Quem, como eu, gosta de sanduíche de salame com queijo se frustra. 100g de salame daria para cinco refeições. É muita coisa. Mas vamos lá. No caixa, o último alerta: “Fiado? Nunca!”. De todos, este é o mais razoável. Não posso pedir os dados bancários da padaria e prometer pagar na segunda-feira que vem. Pois tiro o cartão de débito do bolso a comanda que me é devolvida depois que aperto o verde na maquininha. Sem ela eu não conseguiria sair.

Estamos no reino da desconfiança, mas não estranhamos. Afinal, por que o dono da padaria haveria de confiar em minha palavra? Eu poderia não pagar e nunca mais voltar. Ainda bem que temos outros meios para realizar transações financeiras que não dependem da confiança mútua. Superamos a desconfiança, o estranhamento, com cartão de débito e cédulas. Os bancos e o governo tornam desnecessária a confiança pessoal. Para maior efeito, as assinaturas do Ministro da Fazenda e do presidente do Banco Central constam das notas.

E se esse sistema entrasse em colapso de repente? Não é difícil imaginar. A Venezuela, infelizmente, serve como exemplo.

 

E se esse sistema entrasse em colapso de repente? Não é difícil imaginar. A Venezuela, infelizmente, serve como exemplo. Com a hiperinflação, carregar cédulas ficou pouco prático. Taxistas não usam máquina de débito por conta do alto custo das taxas para cada transação. Agora, muitas corridas são pagas por transferências bancárias. O passageiro pega os dados da conta do motorista e faz um “doc”. Por conta do mau funcionamento da rede de celular, não é possível tirar um print da tela e mostrar imediatamente ao taxista. Ele confia na honestidade do passageiro e assim a vida continua. Há relatos, no twitter, até de empresas aéreas aceitando essa modalidade de pagamento. É isso ou nada.

Sem dúvida é um modo torto e inusitado de ressuscitar a confiança pessoal. As instituições não garantem a validade das transações. Claro que o cenário é menos positivo do que pintei até aqui. Há histórias de apartamentos surrupiados por locatários, pois ao Judiciário não interessa garantir os direitos dos donos. No regime hiper-chavista de Nicolás Maduro, toda propriedade é roubo. Mas transações menores são sustentadas pela empatia mútua dos cidadãos. A confiança é o último recurso de quem não tem governo.

 

*Sérgio Praça é professor e pesquisador da Escola de Ciências Sociais do CPDOC (FGV-RJ). É também pesquisador do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp) da FGV-SP. Realizou mestrado e doutorado em Ciência Política pela USP e pós-doutorado pela FGV-SP. Seus trabalhos acadêmicos já foram publicados pelas revistas Latin American Politics and Society, Journal of Politics in Latin America, Latin American Research Review, Brazilian Political Science Review, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Novos Estudos Cebrap e Opinião Pública, entre outras. Mantém o blog “Política com Ciência” em Veja.com.

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