Resumo: Uma carta de amor em tempos de desconfiança.

Palavras-chave: Confiança. Amor. Casamento. Greve. Comida.

 

Sabe. Pode parecer meio adolescente, mas eu acho impossível apenas viver um grande amor. Sempre haverá conflito, armamento e desarmamento, pessoas passando fome ao meu lado e sei que sempre é uma palavra muito forte, mas não vejo muitas soluções possíveis no breve tempo do meu existir, meu amor. É doce o sabor da sua boca e nós dois sabemos o quanto o mundo não gira em chocolate; ainda bem, pois seríamos todos diabéticos. Pelas gargantas sai o amargo da bile, a digestão malfeita do medo de faltar comida, medo de não ter mais carro, medo, medo, medo. Não confiamos em nossos governantes, descobrimos meio no susto que eles governam a lógica de nossas casas porque deixamos isso acontecer pouco a pouco, basta uma canetada e nossa filha de 6 anos não tem fruta pra comer e carro pra chegar à escola. Ao mudar o meio de transporte, passamos a tropeçar, você e eu, nas incoerências de encontrar a família na calçada com uma criança como a nossa aprendendo a nos despertar o olhar de complacência, manipulando nossos sentimentos com a única arma que ela tem. Imagine, fazer isso com a gente, nos causar tamanha dor! Nós a julgamos como julgamos os nossos pares de classe, credo, cor, caixa qualquer em que queiramos nos definir, pois se queremos um mundo mais igualitário, então precisamos tratá-los como iguais, ainda mais nesses tempos em que aquela família e a nossa se parecem tanto na falta de alimentos. Somos todos família.

Dói a nossa distância, assim como dói a criança nos relembrar nossa própria habilidade de manipulação. Concorremos nas mesmas jornadas, nos mesmos editais e processos de venda do nosso trabalho, e se eu consigo algo é porque sou (engraçado ser) melhor e daí a gente vai lá conferir pra saber se era melhor mesmo. E não era, óbvio. Tão óbvio quanto não conseguirmos nos olhar nos olhos nas noites de conchinha, amaciados pela displicência da crença em não crer um no outro. Quando nos trairemos pelo desgosto dessa vida injusta eu não sei, e me parece um fato que a culpa será minha, afinal, como eu poderia reparar no tamanho da saia da moça ao lado? Quem deveria cuidar do meu homem sou eu. Sempre alerta a qualquer ameaça ao meu bem-estar social, ao papel que me cabe nesse contrato, ao menos tive seus filhos naturalmente. Pra você, meus sorrisos marotos de garota vadia.

Sinto sua falta para conversar abraçados sobre esses assuntos, anda muito frio por aqui.

 

Meu bem-amado, sei que não nos comportamos tão bem dessa maneira. Somos um pouco antiquados para as regras dos nossos colegas, lembra seu chefe oferecendo aquele extra por um autógrafo seu? Todo mundo faz por uma carne-seca no fim do mês. Você negou e prontamente o rapaz do segundo andar quis tomar um cafezinho pra fazer você dançar a dança; cheio de argumentos rasos sobre pliés e contratempos, o rapaz lhe fez entrar no jogo de poder. Não julgo a sua cabeça como fraca, se você não fizesse, outro o faria. Fiquei feliz que você chegou mais cedo em casa, pudemos assistir àquela série que fala dos hipsters diferentões mais padronizados que uniforme de presidiário estadunidense. O chefe escondido em sua própria covardia, nós escondidos em nossa preguiça mortal de nos envolver em discussões de argumentação, sem nunca nos ausentarmos das discussões que provam quem está certo. Somos covardes o suficiente para desistir de aumentar a experiência alheia sobre assunto qualquer.

Sinto sua falta para conversar abraçados sobre esses assuntos, anda muito frio por aqui. O gás de casa está para acabar e relembro de cada porta fechada por mim na saída dos vizinhos, não quero vê-los no elevador, nem mesmo tenho isqueiro para acender um cigarro e me afundar nessa muleta de solidão e tristeza. Não costumamos dizer eu te amo por ser tão precioso o amor dedicado apenas aos nossos, e diante dessa calamidade toda, eu gostaria de lhe perguntar em quem confiar além de você, talvez meus pais, talvez nossos filhos. Talvez, afinal as coisas são tão retornáveis, é quase como se cuspíssemos todos os dias para o alto e esperássemos a hora de melecar nossas faces. Minha mãe cobra o dinheiro emprestado para pagar a escola da pequena, eu cobro o dinheiro do lanche em estudos, você cobra atenção, mãe cobra, pai cobra. As cobras, coitadas, passam longe daquele diretor sugerindo a sua demissão dia após dia, a cada olhar, a cada tapinha nas costas do colega manipulador. Tem uma fila de outros esperando para ocupar a sua saída e a decisão de bancar a sua opinião, graças a Deus, liberou o FGTS para o haloperidol e a fluoxetina, porque ser são neste planeta parece coisa de maluco. Opa, isso não é verdade, não tem mais carteira assinada. Deixar o trabalho para tomar remédios, quem diria. Nem era emprego de verdade. Nem era boa a sua arte.

Querido, estou firme para você, traga-me cotonetes porque já não posso escutar tanta barbaridade sobre a vida, sobre os males que afligem o mundo. Não consigo entender como resolvo problemas nesse caos todo, percebo o colapso chegando a cavalo e não posso ouvir meus pensamentos sem desconfiar da produção de verdades da minha cabeça, e, ainda assim, produzo. Com crises de gastrite, de diarreia, infecções urinárias, alergias e todo o resto psicossomático que me acompanhará a vida toda e é justamente por isso que eu questiono se devo continuar fazendo coisa qualquer que eu faça. A troco de quê? Entreter tantas existências palatáveis que insistem em me colocar no campo do exótico se eu decido existir onde não caibo, porque lhes causa estranhamento eu ser capaz de fazer tantas coisas quanto as pessoas que cabem nessa lógica. Ainda bem que eu sei falar três línguas, aplaudam-me de pé chocados enquanto eu tremo por rogar-lhes aceitação.

Termino essa carta com um carinho dedicado essencialmente a você, cujo desejo de viver apenas um grande amor, uma grande fantasia, uma grandiosidade tão imensa foi capaz de se autodigerir quando lhe questionaram sobre o mau uso de sua inteligência. É um pesar perceber a confusão antiga de não a entender multiplamente, de confundi-la com excesso de informação. Vomitar palavras bonitas me parece coisa para mecanismos de pesquisas, autômatos e, se fôssemos assim, não necessitaríamos agora guardar comida, estocar longe do pessoal da companhia. Fico feliz em ter levado todos os enlatados da prateleira, já lhe digo que fui capaz de calcular o preço dos produtos sozinha e, por essa tarefa realizada, não sei se caibo no exótico ou no diferente, visto que sou de humanas e isso também é tarefa para a calculadora. Talvez eu seja farinha do mesmo saco e, falando nisso, acabei com o estoque de farinha do mercado, ouvi dizer que é o que comiam no nordeste quando havia fome, agora toda a farinha dessa cidade é minha. Bom para comer com jabá. Sinto não poder concatenar melhor minhas palavras para te escrever uma carta puramente de amor. E me diga se ainda há espaço para pureza e ingenuidade em relações desconfiadas, porque eu espero honestamente que você não coma todo o macarrão quando conseguir voltar pra casa.

Com carinho,

Vida

 

Share: