Por Michael Berry

Quem tiver contato com a ciência por meio de televisão poderá ter a impressão de que se trata de uma atividade estranha, bem distante do que interessa à maioria das pessoas. Entretanto, a ciência está bem à mão, pois o mundo é que é interligado de formas estranhas e maravilhosas. Pensem assim: muitos de vocês têm um toca – CD. Você pode carregá-lo quando quiser – na praia, numa montanha, através de florestas, desertos, até no pólo sul e escuta música reproduzida quase perfeitamente. Isso nunca antes foi possível ao longo de toda história humana. Em séculos anteriores, se você quisesse ouvir música, ela teria que ser tocada ao vivo, mas agora temos essa liberdade fantástica de qualquer um poder compartilhar esta experiência em qualquer parte do mundo. De certo modo, é o máximo de democracia: torna acessível para muitos o que antes só podia ser apreciado por alguns. Como foi que isso veio a ocorrer? Por estranho que pareça, graças ao sonho de um físico.

Dentro de cada toca – CD existe um laser. Sua luz é refletida pelas irregularidades do disco e a eletrônica converte este sinal luminoso em som. O laser não foi descoberto acidentalmente. Ele foi projetado, a partir do nosso conhecimento, de ondas e partículas de luz, contido na física quântica. Esta codifica nosso conhecimento mais profundo acerca do estranho e minúsculo universo dentro dos átomos e ainda mais adentro. O laser opera segundo um princípio escoberto por Einstein há quase cem anos atrás. Era teoria pura – o resultado de sonhar acordado. Só que ele nunca poderia ter sonhado que cinqüenta anos depois outros cientistas aplicariam seu princípio para criar uma nova forma de luz pura e brilhante. Ninguém poderia prever que engenheiros usassem pequenos lasers para ler música. Não são apenas os lasers: os circuitos eletrônicos que convertem o sinal luminoso em música contêm milhões de transistores – outro dispositivo projetado a partir da física quântica. E não são só os físicos e engenheiros. Desenvolver o perfil dos CD’s de forma a representar a música, requer matemática: aritmética, trigonometria, álgebra – todas aquelas disciplinas que pessoas, que deveriam saber melhor, perguntam se têm qualquer utilidade.

É claro que não são só os toca – CD. Todo supermercado tem um laser para ler código de barra e todo telefone portátil tem milhões de transistores. O ponto que enfatizo é que essas são máquinas de física quântica que utilizam idéias das mais abstratas em aplicações práticas que usamos todos os dias.

Sou um físico teórico, trabalhando na parte abstrata dessa cadeia de conexões – um sonhador e um rabiscador, principalmente, no contexto de matemática. É um erro pensar que só matemáticos fazem matemática. Às vezes em física você precisa de matemática que ainda não foi inventada. Então criamos a nossa própria e os matemáticos vêm depois e botam a casa em ordem. É claro que também acontece o reverso – precisamos fazer um tipo novo de conta e aí descobrimos que cem anos antes matemáticos nos anteciparam, num contexto de pensamento puro que eles nunca imaginaram ter alguma utilidade. É a história do laser de novo. Seu trabalho trata de ondas de luz, na água, na física quântica e outros tipos de onda. O que me excita são as conexões – tentar entender por que as imagens em telescópio perdem a nitidez e aí verificar que se está explicando a maneira que as linhas luminosas dançam no fundo das piscinas.

É uma boa vida e me satisfaz porque não sou uma pessoa muito competitiva. Isso pode parecer estranho, de novo por causa da imagem popular, propagada pelos meios de comunicação, dos cientistas em uma competição mortal, lutando para publicar suas descobertas antes dos outros e brigando por verbas de pesquisa. Como em qualquer atividade humana, isso às vezes acontece, mas ao longo de todos os meus anos como cientista, encontrei quase sempre o oposto: em vez de competição, cooperação amigável, compartilhando os resultados. Isso não se deve aos cientistas serem melhores do que as outras pessoas: em nossas vidas privadas não somos diferentes dos outros. Nós cooperamos simplesmente porque os modos de funcionamento de natureza ficam tão sutilmente ocultados que nenhum pesquisador, ou pesquisadora individual pode descobri-los sozinho. Somos muito mais espertos em conjunto do que separadamente, portanto faz sentido cooperar e essa cooperação atravessa culturas, nações, raças e religiões. Esteja eu na Grã-Bretanha, na América, África, China, Líbano ou Israel, há comunicação e compreensão imediatas (ainda bem que todos os cientistas falam inglês).

Quando comecei, eu não fazia a menor idéia acerca disso tudo – o sonho, as conexões, as viagens e a colaboração. Na minha família só um primo recebera educação além dos dezesseis anos. Não era uma família nem rica, nem feliz. Meu pai, que era um motorista de táxi, era um homem violento e minha mãe estragou sua visão costurando para compensar o dinheiro que ele perdia com o jogo. Tive a sorte de nascer numa sociedade na qual não era necessário ser rico para receber uma boa educação. É essa a chave: educação.

Escrevi acima “pesquisador ou pesquisadora”. Metade das crianças do mundo são meninas. Por que é que uma fração tão grande do seu talento é desperdiçada? Tenho algo a dizer a respeito disso. Primeiro, existe uma imagem da ciência como uma atividade masculina. Está errado. Mencionei que a cooperação tem a primazia sobre a competição. Tradicionalmente esta é uma característica mais feminina do que masculina.

Também existe essa imagem da ciência como uma enorme parafernália: brinquedos para meninos. Bem, eu gosto de cozinhar e tenho o prazer de ter um colega que estude a ciência do cozinhar – ele chama de gastronomia molecular. É a aplicação de física e química ao que se chama “matéria condensada suave”. Este amigo está colaborando com um grande cozinheiro, um chefe, para criar novos pratos maravilhosos – por exemplo, um sorvete instantâneo perfeito, produzido ao submergir-se a mistura em nitrogênio líquido.

De novo, existe a opinião sinistra de que fica difícil ser uma cientista e cuidar de uma família ao mesmo tempo. Minha esposa é uma bióloga que trabalha no Hospital Oftalmológico tentando entender a deprimente doença dos olhos secos. Ela ainda estava estudando quando nossos filhos nasceram e, então, durante os primeiros dezoito meses de suas vidas, eu cuidei deles na minha sala de trabalho. Foi uma experiência interessante, nada comum para um homem e que muito me ensinou (sobre a tecnologia liberalizante de fraldas descartáveis, por exemplo).

Estas coisas estão mudando. No ano passado participei de duas comissões. Uma era incumbida de conferir o prêmio principal da Grã-Bretanha por pesquisa em matemática. Após cento e cinqüenta anos, foi a primeira vez que foi levado por uma mulher. A outra comissão oferece bolsas-prêmio para os seis mais brilhantes jovens matemáticos da Europa. Os dois primeiros lugares foram para mulheres. Na Grã- Bretanha, as melhores posições para jovens cientistas em todas as áreas são as da Real Sociedade de Londres – é a nossa Academia de Ciências. São algumas centenas de bolsas a cada ano. No ano passado, muitas delas foram para mulheres. Está tudo mudando.

“O barato” da descoberta científica é o conhecimento interior que dela derivamos, a satisfação silenciosa com algo compreendido. Na ciência, ao se descobrir alguma coisa nova, mesmo que pequena, você flutua numa nuvem por alguns dias. É isso que me delicia.


Michael Berry é titular da Universidade de Bristol|Reino Unido
Tradução Alfredo Miguel Ozorio de Almeida
Adaptação e revisão Ronaldo Campos
Este material é de domínio público e tem por objetivo divulgar a ciência. Faz parte da coleção Algumas razões para ser um cientista que procura desmistificar a ciência e estimular o engajamento de jovens no quadro de novas formações.

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