Stella Ramos*
Resumo: Num jogo, as formas, regras e os limites são definidos com a especificidade de ser uma realidade outra, diferente da cotidiana. A linha que separa o que é e o que não é se estabelece justamente pela consciência do território do jogo e de suas qualidades temporais diferenciadas e previamente definidas. O mesmo ocorre no campo da representação simbólica, por exemplo, em Cezanne e Gormley. Quando estamos todos em um território de jogo, os repertórios, experiências, reflexões e dúvidas presentes em cada um passam a habitar este novo lugar construído dentro de fronteiras de tempo e espaço definidos, aéreos, circulantes: respiramos o mesmo ar, preenchido de expirações e ideias diversas.
Palavras-chave: Jogo. Experiências. Arte. Mediação. Educação.
Johan Huizinga, nos idos de 1938, refletiu sobre o jogo como parte formadora da cultura. Em seu Homo ludens, busca encontrar indícios do que poderia ser reunido como prática lúdica. Entre outras coisas, aponta que para que se estabeleça uma espécie de ‘estado de jogo’ é fundamental traçar um território, delimitar, dar forma. O que antes existia de modo um tanto disforme, passa a ser um lugar, mas não um lugar qualquer. Um lugar diferente da luz do dia, o lugar do poeta e do louco, espaço em que se pode sobrepor existências, viver de modo cumulativo uma realidade concreta e uma simbólica, ser outro sem deixar de ser você. Essa linha tênue, amplificada pela sua potência, só pode se estabelecer, curiosamente, graças à existência e consciência do território delimitado. John Dewey, uma das referências fundamentais para o desenvolvimento de uma série de linhas de pesquisa em educação aqui no Brasil, em seu Arte e experiência, chama a atenção para a necessidade deste contorno de um linha temporal, para que se possa identificar o que ele chama de experiência significativa. Se o tempo não pudesse ser destacado pelo início e fim destas experiências, teríamos uma percepção difusa, colada à passagem do tempo cotidiana, com todas as suas nuanças. Só percebemos o diverso pela identificação de que não somos nós, em sobreposição ao que somos.
A palavra inspiração traz já na sua formulação etimológica a ideia de circulação invisível entre este território mapeado do corpo e o mundo exterior.
No campo da representação simbólica, vale olhar para como o contorno na pintura, uma das belas revoluções pictóricas de Cézanne [clique aqui para ver as obras e
ler sobre o artista na Wikipedia], traz um indício metafórico da tentativa herdada do Romantismo de compreender o mundo como denominação, desenhar as bordas do que pode se definir como indivíduo. Isto é isto, isto não é aquilo, isto não sou eu. Do mesmo modo, caminhando pelas fronteiras que nos definem, Antony Gormley apresenta no início dos anos 80 um conjunto de três esculturas de chumbo construídas a partir do molde de seu próprio corpo, um vestígio ressignificado em que as figuras, ocas, concentram sua comunicação com o exterior a partir apenas de diferentes orifícios, destacados um em cada uma delas. Three Ways: Mould, Hole and Passage [clique aqui para ver a foto e a descrição da obra no site da Tate Britain – em inglês] também traça seu território de reflexão sobre as remotas possibilidades de troca entre o mundo interior e o mundo exterior de cada unidade humana existencial, tendo o corpo como metáfora do que é indivisível.
A palavra inspiração traz já na sua formulação etimológica a ideia de circulação invisível entre este território mapeado do corpo e o mundo exterior. Apresenta-se indissociável do processo de troca entre corpo e mundo, associado com o ar que insufla os pulmões trazendo vida ao corpo. Historicamente foi vinculado a um sopro transcendente, que de modo místico internaliza aspirações divinas ao indivíduo, tornando-o um veículo de algo maior, mais leve que o ar. Embora as construções sociais e religiosas tenham se transformado, a ideia de que encontrar inspiração é ser tomado por algo maior que nós mesmos ainda é bastante presente. Por outro viés, se dizemos que alguém nos inspira, reconhecemos que algo que tal pessoa exala, por suas palavras, pensamentos ou realizações, nos preenche com um material diverso do que somos, trazendo novas perspectivas e possibilidades.
Tenho estado envolvida há quase duas décadas com Mediação Cultural, uma prática de educação não formal que está baseada na conexões que se estabelecem entre arte ou cultura e processos artísticos; no seu diálogo com públicos diversos e nas proposições artísticas e seus espaços de circulação pública. Dentro desta prática, encontramos lugares híbridos, delimitações móveis e territórios em constante movimentação. Conjugar encontros, criação e escuta, ser capaz de compreender que as paisagens mobilizadas no outro a partir da convergência com arte são em sua maioria inacessíveis aos olhos alheios, são parte dos desafios e delícias que compõe nossa pesquisa. É bastante comum, dentro das conversas que estabelecem nosso trabalho, que algumas pessoas tragam a demarcação deste lugar da criação artística a partir de um momento inspirado, algo que torne o artista maior do que ele mesmo ao realizar uma obra. Do mesmo modo, é comum a expectativa de que o educador de arte traga explicações e revelações definitivas, vindas de seu repertório e pesquisa sobre determinado artista ou período histórico. É possível estabelecer, entretanto, que a ideia da inspiração, presente frequentemente em conversas sobre o universo da arte, se conecta de modo orgânico com as intermitências propostas por Huizinga, muito mais baseadas na ideia de troca entre os dois ambientes sugeridos pelo traçado da fronteira. A circulação entre dentro e fora é mais interessante do que o foco no sopro, unilateral e unívoco. O acesso ao transcendente, dentro desta prática, tem uma via rica que trata da construção coletiva. Quando estamos todos dentro de um mesmo território de jogo, os repertórios, experiências, reflexões e duvidas presentes em cada um passam a habitar este novo lugar construído dentro de fronteiras de tempo e espaço definidos, aéreos, circulantes: respiramos o mesmo ar, preenchido de expirações e ideias diversas. Tratar de inspiração é habitar esta área em constante transformação, mas que só existe como tal enquanto os corpos ali presentes podem dispor de suas aspirações em conjunto.
*Stella Ramos é licenciada, bacharel e mestre em Artes Plásticas pela Unicamp. Atua desde 1999 com educação e pesquisa em diversos museus, centros culturais e ongs. Trabalha com formação de educadores e com o desenvolvimento de materiais educativos para instituições culturais, especialmente na produção de conteúdo e texto. Tem especial apreço por trabalhar com equipes e com o desenvolvimento de propostas que conjuguem e expandam os campos do jogo e da arte, como estratégia para transformação. Acredita na potência do afeto e da delicadeza. É Pós Graduada em Educação Lúdica pelo ISE – Vera Cruz (SP). Além do jogo tem interesse por literatura e cinema. É integrante do coletivo Zebra5.