Juliano Caravela

Pós-mentira

De longe a gente se vê
os dedos mal tocam um olhar
os medos e anseios
e a boca que fala
agora alguém quer calar

Em tempos de cólera
não se ri nem de cócegas
e damos as costas
pra povo que gosta de desgostar

De perto o preço é maior
o hálito é luxo e poder
e os fracos que dançam
na lâmina fina e nasceram
pra se foder

Em tempos de cólera
não se ri nem de cócegas
e damos as costas
pra povo que gosta de desgostar

Enquanto se refratam os retratos
mas os fatos não estão lá
a crua verdade
é uma mentira
que um dia se engana

E há aqueles que nunca têm vez
e esse nunca não é ficção
é o espelho da rua
que dispara o tiro a quem
corre na contramão

(Juliano Caravela)

O poema acima é, na verdade, a letra de uma música que compus dias após o resultado das eleições de 2018 e chama-se “Pós-mentira”. Um simples jogo de palavras em provocação ao desgastado, mas atual e nocivo termo pós-verdade, eleita a palavra do ano em 2016 pelo dicionário Oxford.

Essa expressão define um cenário ainda vigente, de vultosa distorção deliberada da realidade, permeado por notícias falsas espalhadas como vírus e que atingem, principalmente, faces e zaps presentes nas telas das próteses digitais que todos carregamos nas mãos e dedos. Mãos e dedos estes muito aquém de qualquer “anel de Zapata”, tal como eternizado por Milton Nascimento na canção “Tudo que Você Podia Ser”.

Em termos gerais, a pós-verdade consiste em manipular emoções, crenças e ideais, e faz isso pela ocultação ou desvirtuamento de fatos, com o intuito específico de influenciar o comportamento das pessoas e, principalmente, a opinião pública em determinada direção de caráter moral, política, econômica, religiosa, ambiental, científica, dentre outras. Desse modo, pode-se dizer que a fake news é filha primogênita da pós-verdade e, quem sabe, vice-versa também!

Fake news já é por si só uma expressão falaciosa, envenenada pela própria mentira que carrega e propaga. A começar pela termo e uso da palavra: fake news! Por que não “notícia falsa” ou simplesmente “boato” em vez de fake news? Aqui não se trata de puritanismo linguístico, mas de uma crítica perante o modus operandi próprio de um povo ameríndio, mas de uma cultura sequestrada e colonizada incessantemente por eras. Oswald de Andrade se contorceria todo ao escutar berrarmos aos quatro cantos fake news diante dos meios e informações que tanto nos afetam e nos pautam enquanto povo, história e cultura, pois veria enterrada a sua máxima antropofágica “Tupi or not Tupi, that’s the question”.

A maioria dos brasileiros, em razão de histórica defasagem educacional, não sabe sequer o significado de “news”, muito menos de “fake”, mas mesmo assim dizem! Com relação ao termo boato, seu significado é automático — a palavra carrega a sua intenção cultural, a comunicação é na linha direta do popular, vai ao ponto, ao “papo que é reto” e deixa claro o recado. Mas não, dizer fake news é hegemônico, e assim como em outras muitas situações, continuamos a nos arrastar e deixar escorrer pelo ralo da história toneladas de um arcabouço identitário histórico-cultural que se perde a cada passo, a cada golpe colonizador, diante de tantos autorretratos falsos de um país, fotografado ao estilo “bastão de selfie“.

Você pode até argumentar e defender esse estrangeirismo da língua em nome de um processo natural ou tecnológico de “globalização”, mas globalização para quem? Um “mundo sem fronteiras” para quem? Será que essas expressões também não fazem parte do projeto pós-verdade? De criar uma narrativa utópica, de uma qualidade de vida elitizada em detrimento de uma vida de qualidade justa e mais igualitária? Se repousarmos um pouco nessas questões, talvez cheguemos à conclusão de que o argumento da globalização pode muito bem ser e embriagar-se dos meandros da pós-verdade também.

Desse modo, as notícias falsas ou boatos são ao mesmo tempo causa e efeito de si mesmas, instrumentam e “embasam” a pós-verdade à medida que são geradas por esta, uma é efeito colateral da outra, e isso se dá porque a mentira funciona em processos cíclicos, em cascata e muitas vezes caóticos: uma mentira gera outra, que gera outra e que gera outra, e isso, obviamente, não é diferente em relação às “notícias falsas”.

O etólogo Richard Dawkins já alertava em sua obra O gene egoísta, de 1976, que toda informação midiática possui um código genético, uma unidade informacional altamente contagiosa e, coincidentemente, o denominou “meme”, só que isso em 1976. Ressalta o autor que cabe unicamente a quem o recebe (“o código meme”): filtrar, analisar, investigar, para então ser tomada a decisão de poda ou de semeadura dessa mensagem/informação. Somos e devemos ser o filtro que prolifera, mas que também que esteriliza. A responsabilidade está em nós e à medida que nos tornamos meros hospedeiros de qualquer informação.

Há um ditado popular que diz que “o peixe morre pela boca e o homem morre pela língua”, mas toda mentira nasce pela boca, pelo sopro, pela palavra enquanto respiração e significado, ainda que somente pensada, ou pior, virtualizada.

Além disso, a mentira, para sobreviver, precisa ser recontada inúmeras vezes, algo que é preciso fomentar continuamente. Caso contrário, se desfaz como castelo de areia. Nesse sentido, um importante atributo da mentira é a memória. Para se manter, a memória do mentiroso deve ser maior que o comum, caso contrário, há o risco de esquecê-la, o risco de se contradizer, o risco de ser pego pela própria palavra, pois não há substância em não fatos, eles se fazem à medida que se proliferam. Sempre que refutada, contraposta ou questionada, a mentira recorrerá a outra geração de mentiras e mais outra infinitamente. Já um fato verdadeiro, um não boato, pode ter a capacidade de se sustentar sozinho, sobre seus próprios pés, por si só, e talvez aí, quem sabe, a crua verdade brote de uma mentira que um dia se engane, tropece em si.

E depois, o que virá e será do após pós-verdade, do pós-mentira? Talvez essa pergunta aponte para o resgate de uma possível honestidade social ou não, só saberemos ao passo dos dias da nossa senda historial. No entanto, é fato que os escombros deixados pela pós-verdade já se fazem bem visíveis.

Para finalizar esta breve reflexão em forma de provocação, deixo aqui algumas poucas frases de personalidades famosas e históricas sobre a mentira, e escritas muito antes de a fake news ser uma gíria popular:

  • Jamais diga uma mentira que não possa provar. (Millôr Fernandes)
  • Uma mentira dá uma volta inteira ao mundo antes mesmo de a verdade ter oportunidade de se vestir. (Winston Churchill)
  • A História é um conjunto de mentiras sobre as quais se chegou a um acordo. (Napoleão Bonaparte)
  • As pequenas mentiras fazem o grande mentiroso. (William Shakespeare)

Até a próxima!

 

JULIANO CARAVELA é Poeta, compositor e professor. Advogado pela PUC/SP e Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Sua obra é uma degustação de poemas, melodias e insights da experiência cotidiana autobiográfica, com influências poéticas que vão do abstrato ao concreto haicaísta e musicais que vão da bossa nova ao pop brasileiro.

Empreendedor nas áreas de Arte/Educação/Cultura, ministra palestras, workshops e vivências para empresas, escolas e grupos. Curador de eventos de arte e poética da Casa das Rosas e gestor do Espaço Cultural AveVenus, em São Paulo.

Obras:

Livro: Samadhi – Vértebras em que versos correm (2016). Ed. Confraria do Vento.
Disco: Transeunte (2018) – Álbum poético musical. (spotify/deezer/itunes)
Clipes e vídeos: YOUTUBE/JULIANO CARAVELA
contato: [email protected]
@espacoavevenus / @juliano_caravela (instagram)

 

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