Por Homero Santiago
De tempos para cá, as fake news tornaram-se uma das questões mais controversas de nossa época. Tanto que, segundo alguns, vivemos na “era da pós-verdade”, ou seja, o momento em que se esvaneceram os critérios tradicionais que usávamos para distinguir verdade e falsidade, realidade e mentira ou ilusão.
À primeira vista e tomada literalmente, a fórmula “pós-verdade” é exagerada. O prefixo “pós” parece pressupor um período anterior em que a verdade imperava e todo mundo tinha clareza sobre as artimanhas do falso. As mães nunca deixaram de aconselhar os filhos a não contar mentiras e os cientistas incessantemente buscaram a verdade, mas nunca foi bem assim, ao menos não absolutamente assim. Boatos, calúnias, fabulações, pequenas mentiras de conveniência, tanto as meigas quanto as mais pérfidas, sempre existiram e ocuparam um lugar importante na vida humana, especialmente nas relações que mantemos com os outros, seja em família, seja em sociedade. Salvo engano, foi Nelson Rodrigues que certa vez afirmou, com grande argúcia, que se todo mundo fosse sincero, ninguém se cumprimentava na rua. Por outro lado, sente-se claramente que há algo novo. Talvez a novidade esteja na proliferação de inverdades e nas possibilidades inéditas de manipulação permitidas pelo universo virtual e pelas redes sociais.
Posto de lado o exagero da “pós-verdade”, assim como o daqueles que imaginam a enxurrada de fake news à maneira de produto da ação coordenada de um pequeno comitê de indivíduos malignos ocupados em nos iludir, uma espécie de Deus enganador (sugestiva imagem do filósofo René Descartes) que a cada passo nos desviaria da verdade, o fato é que em nossos dias há um processo de paulatina debilitação dos padrões mínimos de constituição de um discurso verdadeiro; a tal ponto que a noção tradicional e mais ou menos aceita de verdade, ainda que não tenha desaparecido, anda um tanto capenga. A incrível frequência com que as pessoas perguntam “será verdade ou é fake?” demonstra essa instabilidade dos critérios cognitivos para uma percepção razoável (e nem digo racional) das diferenças entre o que é fato e o que é ficção.
Resumo possível de nossa incômoda situação: embora o ideal de verdade não tenha desaparecido e sobreviva em nossas cabeças, é como se ele pisasse em falso a cada momento. Vivenciamos um curioso tipo de verdade em falso. Isso não implica que as nossas verdades e as que os outros nos comunicam sejam todas inteiramente falsas; assim fosse, até seria fácil lidar com o problema, pois quando tudo é falso, ou tudo é verdadeiro, simplesmente não ficamos nos perguntando “é verdade ou é fake?”. A interrogação é o signo certeiro de um mal-estar, de uma indecisão, de um vacilo de nossas certezas e de nossa capacidade de bem apreender o real.
O que se convencionou chamar de fake news é duplamente problemático, já pelo nome. Para começar, o news não é notícia (de um órgão de imprensa, por exemplo), e é menos mentira que maquinação. O fake não é exatamente falso; é o fictício, o falsificado, o construto que pretende simular a verdade e, como tal, produzir efeitos verdadeiros. Por isso falamos em verdade “em falso”. Não se trata de pura mentira, delírio ou enunciado esvaziado de toda positividade; assim como um “passo em falso” (em nossa linguagem cotidiana) não é um tropicão: designa o ato mal realizado, ou porque erramos o alvo da pisada, ou porque um obstáculo se interpôs, ou simplesmente porque um incômodo de nossos membros inferiores (um joelho que teve o menisco rompido, por exemplo) nos rouba a firmeza do gesto; daí provém a sensação de queda iminente, a qual porém não se completa – o desequilíbrio, nem passo nem tombo. Nesse sentido, as fake news ocupam uma posição intermediária: situam-se entre a mentira deslavada, e portanto completa ausência de verdade, e a presença do verdadeiro em sua plenitude, e portanto completa ausência do falso. É mais que o falso e menos que o verdadeiro. Uma coisa diferente de ambos e que possui características, lógica e eficácia próprias e que ainda desconhecemos. E por isso mesmo a verdade tão pouco pode contra as fake news.
Ora, se o que chamamos de fake news não é inteiramente novo, por que tanto falar delas atualmente? Intrigante dúvida: existem fake news e elas simplesmente nos atingem (como uma gripe nos acomete) e reviram nosso pensamento, ou as fake news existem porque realmente desejamos que existam tais “verdades”, geralmente simplórias, sobre um mundo que nem sempre é redutível à simplicidade? É algo sobre que refletir, sobretudo porque, no segundo caso, não somos passivas vítimas da mentira, mas desejosos consumidores da falsificação, mais ou menos deliberada, do real – a que desejo secreto e a que forma de pensar viriam as fake news satisfazer? Difícil responder por a + b sobre algo que, muito ambiguamente, é novo sem deixar de ser velho, e vice-versa. Aqui só quis chamar a atenção para um desconforto cada vez mais agudo, bem como organizar um pouco os desafios que ele nos lança.
Homero Santiago
Livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde é professor de História da Filosofia Moderna. Possui graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo.