Por Ronaldo Campos

Carl Gustav Jung (1875-1961) nasceu em uma pequena vila suíça. Foi criado numa família de pessoas cultas e era muito apegado à sua mãe — que sofria de depressão.

Jung estudou psiquiatria, mas, após conhecer Sigmund Freud (1856-1939), em 1907, tornou-se psicanalista e levou adiante as ideias de Freud de que não somos guiados por forças externas como Deus ou destino, mas somos na verdade motivados e controlados pelos processos internos da nossa própria mente, em especial, pelo inconsciente.

Segundo Jung, a psique é formada por três componentes: o ego, o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. O ego representa a mente consciente ou self, enquanto o inconsciente pessoal conteria as memórias do indivíduo, inclusive as que estão suprimidas. O inconsciente coletivo seria a parte da psique que abriga os arquétipos; os arquétipos formam a base dos padrões de comportamentos instintivos e não aprendidos, que são comuns a toda espécie humana e que se apresentam a consciência humana de certas maneiras típicas.

Um exemplo de arquétipo é o que Jung denominou de anima e animus. A anima personifica o elemento feminino no homem, e o animus personifica o elemento masculino na mulher. Ambos são funções inconscientes existentes em todo ser humano e podem ser projetados em outra pessoa. A projeção é um mecanismo psíquico que ocorre sempre que um aspecto vital de nossa personalidade que desconhecemos é ativada. Quando algo é projetado, vemo-lo fora de nós, como se fizesse parte de outra pessoa e nada tivesse a ver conosco. A projeção é um mecanismo inconsciente. Não somos nós que decidimos projetar algo, isso acontece automaticamente. Só são projetados conteúdos inconscientes; no momento em que algo se torna consciente, cessa a projeção. Dois exemplos históricos esclarecerão a importância e a força que exercem na psique.

Dante Alighieri

Dante e Marco Antônio são exemplos clássicos de homens cuja anima se projetava sobre as mulheres; acontece, porém, que eles lidavam de modos bastante diferentes com suas projeções. Quando tinha apenas nove anos de idade, Dante encontrou Beatriz (que também estava com nove anos). Imediatamente se apaixonou por ela. Quando nos apaixonamos subitamente por alguém podemos ter a certeza de que alguma projeção entrou em jogo; pois como poderíamos nos apaixonar por alguém que ainda não conhecemos? A descrição que Dante escreveu sobre esse episódio, mostra a poderosa influência que a imagem de anima projetada teve sobre ele:

Sua roupa naquele dia era de uma cor muito nobre, um leve e belo tom de carmezim, enfeitado e bordado de maneira adequada à sua tenra idade.
A tal momento, devo dizer com o máximo de verdade que o espírito de vida, que habita o quarto mais secreto do coração, começou a tremer tão violentamente que as mínimas pulsações do meu corpo ficaram abaladas; e, tremendo, eu disse essas palavras: Ecce deus fortior me, qui veniens dominabitur mihi (Eis uma divindade mais forte do que eu, que, vindo, consegue dominar-me)… A partir de então, o Amor passou a governar a minha alma*.

Com isso, terminou praticamente o relacionamento entre Dante e Beatriz, se é que podemos chamar de relacionamento um encontro tão rápido, mas começou o relacionamento de Dante com sua própria alma, e tal encontro lançou-o de vento e popa em sua deslumbrante e vigorosa carreira de poeta. Dante escreveu muitos de seus belíssimos sonetos para Beatriz, e, na sua obra-prima, A Divina Comédia, Beatriz reaparece como guia no céu. O fato de que, aos trinta e tês anos, Beatriz se casou com outro, morrendo um ano depois, não desanimou Dante em nada. Ele transformou seu encontro com a anima, que recaiu sobre Beatriz, numa obra sólida e criativa e fê-lo durar a vida inteira.

Marco Antônio

A experiência do general romano Marco Antônio foi bem diferente. Depois do assassinato de Júlio César em 44 a.C., o filho adotivo de César, Otaviano, passou a ser imperador no Ocidente e Marco Antônio no Oriente. Marco Antônio dirigiu-se para seus novos domínios, a fim de receber a homenagem dos vários reis e rainhas que agora se achavam sob seu governo, entre os quais estava Cleópatra, a rainha do Egito. Cleópatra, que supunha ser a conquistada, transformou-se em conquistadora, enquanto viajava pelo rio Cidno para encontrar-se com Marco Antônio “numa embarcação com velas púrpura, popa dourada, remos de prata que acompanhavam o ritmo da música de flautas, pífaros e harpas. Suas servas, vestidas como ninfetas e sereias do mar, formavam a tripulação, ao passo que ela própria, vestida como Vênus, ficava sob um baldaquim revestido de tecido de ouro”**. Quando Marco Antônio encontrou essa “sedutora aparição”, apaixonou-se por ela imediatamente, e assim começou um dos mais famosos e trágicos romances de amor existentes na história.

Cleópatra tornou-se como que a alama de Marco Antônio e, consequentemente, gozou de enorme poder e prestígio junto dele. Marco Antônio enfraqueceu-se desastrosamente, porque só podia experimentar sua alma tal como se projetava em Cleópatra, e, a partir dessa época, suas qualidades de general e de líder se deterioraram. Até então, Marco Antônio havia sido um chefe militar famoso, cuja coragem e dedicação ao seu exército tinham conquistado a firme lealdade de suas tropas. Um bom exemplo disso é a batalha contra Otaviano. Marco Antônio tinha um exército superior e era um general mais experiente, enquanto que Otaviano havia construído uma nova força naval e alcançado vitórias navais recentes no Mediterrâneo Ocidental. Mas Marco Antônio preferiu enfrentar Otaviano no mar, porque Cleópatra, que possuía sua própria frota, assim o quis. “A tal ponto estava ele agora reduzido a um mero apêndice da pessoa de Cleópatra”, escreve Plutarco, “ que embora fosse muito superior ao inimigo em forças atuantes em terra, que, mesmo sem a aprovação de sua mestra e senhora, desejou que a vitória fosse ganha por mar”.

As duas equipes navais travavam a famosa batalha de Ácio em 31 a.C. Marco Antônio destacara do seu poderoso exército mais de 100.000 homens e colocara-os a bordo das grandes e pesadas galeras que constituíam sua frota. Otaviano foi ao encontro dele com sua frota de embarcações menores, porém muito mais de serem manobradas. Além disso, as embarcações de Marco Antônio eram dirigidas por marinheiros recrutados e inexperientes, ao passo que as de Otaviano o eram por romanos experientes e leais. Não obstante, a batalha poderia ter sido ganha por Marco Antônio, se não fosse o seu exagerado apego a Cleópatra. Escreve Plutarco: “Mas a sorte do dia ainda não estava decidida e a batalha apresentava igualdade de condições, quando, subitamente, sessenta navios de Cleópatra forma vistos levantando as velas e afastando-se velozmente pelo mar, passando direto no meio das embarcações em combate… O inimigo ficou atônito ao vê-las afastar-se, auxiliados por um vento favorável, em direção ao Peloponeso. Foi aí que Marco Antônio mostrou ao mundo inteiro que ele não mais agia movido pelos pensamentos e pelos motivos de um comandante ou de um homem, ou mesmo segundo o seu próprio critério final, e que ficava bem provado como sendo uma grande verdade o que certa vez se dissera por gracejo: a alma de um amante vive no corpo de outra pessoa. Pois, como se ele tivesse nascido já constituindo uma parte dela e fosse obrigado a segui-la para onde quer que ela fosse, assim que viu o navio dela indo embora, ele abandonou todos que estavam lutando e sacrificando suas vidas por ele, e embarcou numa galera de cinco pares de remos, … para segui-la, justamente quando esta começara a provocar o fracasso dele, decidida, de então em diante, a concretizá-lo totalmente”.

As forças do general Marco Antônio, desorientadas com a fuga de seu chefe, perderam a batalha. Durante algum tempo, suas tropas remanescentes reuniram-se em terra e mantiveram-se firmes esperando a volta do seu líder. Mas, quando se constatou que Marco Antônio de fato não voltaria mais, até os seus soldados mais leais passaram para o lado de Otaviano vitorioso. Enquanto isso, Marco Antônio, mergulhou em profunda depressão, regressara ao Egito, para aguardar a sua definitiva destruição. Alguns meses depois, ambos, Marco Antônio e Cleópatra, mataram-se por suas próprias mãos.

A diferença de desfecho entre as vidas de Dante e de Marco Antônio pode ser atribuída aos modos pelos quais eles corresponderam à projeção da anima. Os dois experimentaram a força da anima quando projetada sobre uma mulher mortal. Dante, porém, transformou a experiência numa obra criativa e realizou a sua Beatriz como sendo uma figura de sua própria alma. Marco Antônio foi incapaz de sentir a alma a não ser através de uma projeção, que o levou a uma vida de prazer e de idolatria, e, assim, desencaminhou-o, levando-o à perda da integridade de sua personalidade.


* Dante, La vita nuova [A vida nova], como é citado em The Age of Faith por Will Durant, Simon and Schuster, Nova Iorque, 1950, p. 1059.

** Will Durant, Caesar and Christ, Simon and Schuter, Nova Iorque, 1944, p. q87.

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