Por Ronaldo Campos
Quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que havia uma pandemia do novo coronavírus — vírus causador da doença respiratória Covid-19 (sigla em inglês para Coronavirus Disease; 19 refere-se ao ano de 2019, quando o primeiro caso da doença foi registrado na província chinesa de Wuhan) — e que a única maneira de combater a proliferação desse vírus era o isolamento social, de imediato lembrei do livro O lucro ou as pessoas?, escrito pelo professor de linguística do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Noam Chomsky.
Em seu livro, Chomsky argumenta contra o neoliberalismo, que, em poucas palavras, pode ser entendido como um sistema econômico e político que privilegia o livre mercado, as escolhas do consumidor, as iniciativas empresariais e freiam a participação do Estado na economia. É bom lembrar que o neoliberalismo advém do liberalismo (como o próprio prefixo grego ‘neo’ deixa claro), ou seja, novo liberalismo; o liberalismo é uma corrente filosófica da economia política que começa a ter suas bases teóricas delimitadas por John Locke. Ele defendia ideias contra os mandos e desmandos de um governo absolutista, mais especificamente dos reis absolutistas europeus, em prol da liberdade de uma burguesia que ascendia ao poder no século XVII. É bom frisar que a “tal liberdade” defendida por ele referia-se à liberdade da burguesia do jugo do rei.
O liberalismo estende-se até a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. Provocada pela alta das ações, que atraiu um contingente enorme de investidores deslumbrados pela possibilidade de enriquecimento rápido, os valores das ações não mais correspondiam à realidade de consumo e geração de lucros das empresas. Os valores das ações tornaram-se fictícios e muitos investidores, temendo uma perda cada vez maior, decidiram vendê-las praticamente ao mesmo tempo. O auge da crise aconteceu em 24 de outubro daquele ano, quando não houve quem comprasse as ações. Esse dia é conhecido como a Quinta-feira Negra.
O presidente estadunidense na época, Herbert Hoover, mantinha firme sua posição liberal de não intervenção estatal na economia para tentar reverter ou estancar a crise social e econômica que surgira. Essa sua postura levou à derrota dos republicanos para os democratas nas eleições nacionais ocorridas em 1932, dando a vitória ao candidato do Partido Democrata Franklin Roosevelt, que não pensou duas vezes para implantar as teorias econômicas criadas por John Maynard Keynes (1884–1946).
O keynesianismo defende a intervenção do Estado na economia de modo a combater as eventuais crises, garantir os empregos e os direitos sociais. Essa política teve um predomínio mundial, entre os países capitalistas, até o final dos anos de 1970, quando voltou a ganhar prestígio a liberdade de mercado. E durante os anos de 1970, 1980 e 1990 há um enorme aumento da pobreza no mundo decorrente das políticas neoliberais. Só para se ter uma ideia, em 1971, 90% das transações financeiras internacionais tinham alguma relação com a economia real e somente 10% eram especulativas. Pois bem, isso praticamente se inverteu em 1995, quando 95% do capital investido era especulativo (lembra da crise de 1929?) e apenas 5% tinha relação com algum investimento real em produção. O resultado? Baixo crescimento econômico, baixos salários, aumento da desigualdade social e alto desemprego.
Embarcamos no neoliberalismo a partir de 1990. Os dois primeiros anos são marcados por tropeços, pois Fernando Collor de Mello quebrou sua promessa de campanha eleitoral e fez a mais abusiva e desastrosa intervenção do Estado na economia, congelando preços e salários e confiscando o dinheiro de todas as contas bancárias. Mesmo sem critérios, ele inicia as privatizações e cria um grande desajuste na economia, além do esquema de corrupção montado por ele. Mas isso não impediu que houvesse uma abertura econômica por meio da liberalização financeira e comercial e da eliminação de barreiras ao investimento estrangeiro.
Somos bons alunos e nos anos seguintes cumprimos à risca quase tudo que o Consenso de Washington prega, ou seja, privatização das empresas estatais, retirada das proteções ao capital estrangeiro e de investimentos, a desregulamentação do Estado na economia, fim da inflação, fixação dos preços pelo mercado e proteção dos bens privados de produção. Eles, os arquitetos do Consenso de Washington, são neoliberais ferrenhos. São os senhores da economia privada, os donos de empresas gigantes que controlam a maior parte da economia internacional e ditam a formulação política e estrutural, e principalmente a opinião pública.
Imagine você se o nosso Chicago boy tivesse levado adiante seus planos de privatização da saúde e da Caixa Econômica Federal. Desde quando assumiu o Ministério da Economia, Paulo Guedes virou sinônimo de privatização. E se após a realização de seus sonhos, o coronavírus aportasse por aqui — como de fato aconteceu no começo deste ano? Nesses momentos é que acabo acreditando na frase: “Se Deus existe, ele é brasileiro”. São 59 milhões de pessoas cadastradas no Auxílio Emergencial da Caixa para receber três parcelas de R$ 600,00, limitados a dois membros da mesma família. Dinheiro que mal dá para pagar as necessidades básicas… E se porventura algumas dessas pessoas (ou muitas, como de fato acontece) adquirissem a Covid-19 num sistema de saúde privado e tivessem que custear seus tratamentos?
É bom frisar que Noam Chomsky não é comunista, nem defensor do leninismo. O que ele ensina é que a democracia é uma pedra angular pela qual vale a pena lutar e que é um absurdo equiparar capitalismo com democracia. Mesmo nas sociedades capitalistas mais adiantadas, ele questiona se um dia haverá uma abertura irrestrita à informação ou à tomada de decisões para além das possibilidades mais estritas e controladas. Pois não é novidade para ninguém que as grandes empresas influenciam a mídia e controlam o processo político. Lá, nos Estados Unidos, como ele exemplifica, 0,25% dos americanos mais ricos é responsável por 80% do total das contribuições políticas individuais, e a contribuição das grandes empresas supera a dos trabalhadores em uma proporção de 10 para 1.
No regime neoliberal, tudo isso faz sentido, já que as eleições refletem os princípios de mercado. As contribuições são tratadas como investimento, reafirmando a irrelevância da política para a maioria das pessoas e confirmando o domínio das grandes empresas na política. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência. Lembra da JBS? Odebrecht? OAS? Alstom? Andrade Gutierrez? Etc., a lista é longa!
Não é à toa que para que haja uma participação da população na política é preciso que haja grupos comunitários, bibliotecas, escolas públicas, associações de moradores, sindicatos, enfim, locais para reuniões públicas que propiciem formas de comunicação, encontro e interação entre os concidadãos. Tudo o que as grandes empresas não gostam, pois insistem na ideia de que o mercado está acima de tudo. Em vez de cidadãos, elas querem consumidores. Em vez de comunidades, elas produzem shopping centers e o que sobra é uma sociedade atomizada, descompromissada, desmoralizada e socialmente impotente.
Chomsky mostra em seu livro O lucro ou as pessoas? que não há nada de novo no neoliberalismo senão a versão atual da longa luta da minoria opulenta pela limitação dos direitos políticos e do poder civil pela maioria. E com a mesma retórica de seus antecessores, os neoliberais agem como se estivessem prestando um grande favor aos pobres e à classe trabalhadora, na medida em que dizem que a prosperidade um dia chegará para todos — desde que ninguém se interponha à política neoliberal. Afinal, segundo eles, não há outra alternativa, já que o socialismo e o comunismo fracassaram.
Como diz o professor de comunicação, Robert W. McChesney, da Universidade de Illinois: “A ideia de que não pode haver alternativa melhor do que o status quo é, mais do que nunca, artificial nos dias de hoje, diante de tantas maravilhas tecnológicas capazes de melhorar a condição humana. É verdade que ainda não está claro como estabelecer uma ordem pós-capitalista viável, livre e humana, ideia que guarda em si mesma algo de utópico. Mas todo progresso histórico, desde a abolição do escravismo e o estabelecimento da democracia até a extinção formal do colonialismo, teve de superar, em algum momento, a ideia de sua própria impossibilidade pelo fato de nunca ter sido realizado antes”.
Mesmo que para nós ainda pareça inatingível essa ideia de uma sociedade mais justa, de uma economia baseada nos princípios da cooperação e de uma completa liberdade individual, alguns sinais de mudanças surgem neste momento tão conturbado em que vivemos. Sei que ainda é cedo para afirmar se elas vieram para ficar ou se são apenas passageiras. Porém, como diz Chomsky: “Se agirmos com a ideia de que não haverá possibilidade de mudança para melhor, garantiremos que não haverá mudança para melhor. A escolha é nossa, a escolha é sua”.