Por Isabel Ramos

O momento que estamos vivendo no Brasil e no mundo inexoravelmente convida até os mais distraídos a fazer uma avaliação da própria vida sob a perspectiva do como a estamos vivendo. Estar isolado em maior ou menor grau tem levado as pessoas a fazer ainda uma releitura sobre o próprio conceito de tempo.

O “antigo normal” nos inseria numa rotina automatizada e altamente ocupada, não necessariamente produtiva. O jargão falta de tempo já fazia com que os mais dedicados estudiosos se debruçassem sobre o tema e o mercado rapidamente lançou livros, cursos e workshops de modo a dar dicas sobre como otimizá-lo.

Se pudéssemos, daríamos um jeito de transformar as horas num produto que seria dos mais valiosos bens de consumo. Assim, num curto espaço de tempo, veríamos que a nova tendência seria negociar em mercados altamente competitivos a fração do tempo ideal.

Bem, o novo normal ainda não tornou empacotáveis os ciclos de dias e noites nas suas formas mais conhecidas e demarcadas. Por sua vez, nos apresentou um lugar onde, uma vez impelidos à reclusão dos lares, passamos a ganhar as horas investidas com os infindáveis deslocamentos que permeiam a vida na cidade grande, dentre outros afazeres cotidianos, o que trouxe um olhar de quase infinitude entre o amanhecer e o anoitecer.

Eis que diante dos mais sinceros relatos, é fácil concluir que não estávamos deliberadamente preparados para ter mais tempo. Descobrimos com dor que conviver consigo e com os outros de modo mais intenso é um desafio que precisa ser perseguido, compreendido e vivido.

Isso para não dizer que o processo de descoberta ainda está em pleno vapor, pois é flagrante que não somos tão experts em tecnologia quanto imaginávamos ser, que não temos tantas habilidades no trabalho remoto — que exige um inevitável delegar e confiar —, que nossas mais profundas crenças precisam, portanto, de uma repaginação, sob pena de ficarmos no limbo entre o antigo e o novo normal.

Nesse sentido, é possível remontar à musa da filosofia, que é a morte, conforme declarou Schopenhauer. E assim, o convite que se apresenta é para que racionalizemos de modo que a aceitação da morte seja um campo fluido, uma vez que é das poucas certezas que permeiam a humanidade, para que numa interpretação extensiva lancemos mão de uma análise do que precisa ser enterrado.

Algumas questões existenciais já se encontram mortas pelo desuso ou inaplicabilidade do cenário, outras tantas ganham aspecto fúnebre pela obscuridade ou carga demasiadamente pesada, e que exigem tanto combustível na viagem da vida que abrir mão delas talvez se mostrasse a melhor alternativa. Entretanto, apegados que somos, acumuladores que somos, seja de bens de consumo, seja de verdades fabricadas, já não nos sentimos aptos a existir sem todo esse aparato ilusório e transfigurado.

A racionalidade clama por protagonismo, as reflexões pedem megafone no palco da vida e o luto pede para ganhar espaço, pois sabe que reconhecê-lo e aceitá-lo é uma das formas de deixar seguir o que não se pode reter, desse modo dando abertura e espaço ao novo que deseja e precisa nascer.

A vida humana vem sendo moldada por crenças limitadoras que fazem da nossa espécie a marionete da contemporaneidade, logo altamente manipulável. Contexto que deflagra o niilismo existencial e o aumento das estatísticas de doenças psicossomáticas, de transtornos comportamentais — e uma preocupante consequência, que é medicalização desmedida. Lembrando que a diferença entre remédio e veneno é apenas a dosagem.

Há quem diga que o humanismo exacerbado nos levou para este lugar de um autorreferenciamento que acabou por nos cegar. O individualismo, imperativo comportamental, é como uma erva daninha que corrói a grandiosidade e profundidade do aprendizado, que só se apreende quando abertos ao coletivo e, portanto, no reconhecimento do outro.

Que o presente pensar não seja sentença, mas que em sua essência alcance a transcendência.

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