Por Maria Clara Dias

Mas o que exatamente significa falar de níveis de desejos e de liberdade da vontade? De acordo com nosso uso mais comum do conceito de liberdade, alguém é livre quando realiza aquilo que quer ou decide realizar. Contra essa definição trivial de liberdade, Frankfurt apresenta o conceito de liberdade da vontade. Ser livre, nesse sentido, não é ser livre para fazer o que se quer, mas sim para desejar o que se quer. O que significa dizer que alguém é livre para desejar o que quer? O que está realmente implicado pelo conceito de liberdade da vontade que falta ao conceito comum de liberdade?

Deixando de lado especulações metafísicas sobre a liberdade, podemos dizer que a atribuição ou não de liberdade a alguém tem consequências práticas inquestionáveis. De acordo com o senso comum, só responsabilizamos alguém pelas consequências de seus atos se supusermos que esse alguém é livre para agir de acordo com sua própria decisão. Mas será que, para garantir a plausibilidade de tais práticas, precisamos ir além do nosso conceito comum de liberdade? Eu penso que não. Para reconhecer alguém como responsável pelos seus atos, não precisamos imaginar diferentes níveis de desejos, nem nos comprometer com algum tipo de premissa acerca da liberdade da própria vontade. Liberdade como capacidade de determinar as próprias ações pode ser entendida, em sentido trivial, como a capacidade de agir baseado na avaliação de crenças e desejos.

Seguindo essa posição, dizemos que alguém é responsável por seus atos quando reconhecemos que ele poderia ter agido de outro modo, caso assim decidisse. Em outras palavras, quando reconhecemos que agiu sem coação e que foi capaz de escolher entre alternativas distintas. Ausência de coação e presença de alternativas fazem, portanto, parte do background a partir do qual julgamos alguém como livre e, por conseguinte, como responsável por suas ações.

Podemos imaginar também situações nas quais o agente é livre de coação, age com base em seus desejos, mas, ainda assim, não estamos inclinados a dizer que foi responsável pelos seus atos. Esse é o caso de situações em que o indivíduo em questão são animais, crianças pequenas ou mesmo adultos carentes das habilidades necessárias ao exercício da racionalidade. Assim sendo, podemos indicar a anteriormente mencionada capacidade da racionalidade, ou seja, a capacidade de agir baseada na avaliação das crenças e desejos mais relevantes, como uma condição necessária, embora não suficiente, para a atribuição de liberdade. A capacidade de determinar as próprias ações de acordo com suas próprias metas é o que chamarei liberdade como autodeterminação. Um ser autodeterminado é aquele capaz de agir com base em razões: com base em um set relevante de informações acerca de suas crenças, seus desejos e seu entorno (meio ambiente, background).

Retornando a nossa questão original, podemos agora dizer que ser uma pessoa é não apenas ser uma entidade a qual são atribuídos predicados físicos e mentais, mas ainda ser capaz de refletir sobre suas ações — nesse sentido, de se deixar influenciar por razões e argumentos a favor ou contra determinada conduta — e ser capaz de determiná-las de acordo com o seus próprios fins. Essa capacidade de eleger seus próprios fins, de constituir um projeto de vida, de se autodeterminar é, por conseguinte, uma característica distintiva daqueles que reconhecemos como pessoas.


Maria Clara Dias realizou pós-doutorado na Universidade de Connecticut (2003), na Universidade de Oxford (2006/2007) e Tulane (2016), doutorado em Filosofia pela Freie Universität Berlin (1993), mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1989) e graduação em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1986).
É organizadora do livro Bioética: fundamentos teóricos e aplicações, Appris Editora, Curitiba/PR, 2017.

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