Por Camila Barreto

Rafaella é estudante de Psicologia, cantora, compositora e instrumentista da nova MPB. Ela acaba de lançar o seu álbum de estreia, Cartas de Amor para a Minha Janela, produzido por Marlon Sette e Pepê Monnerat, um mergulho para dentro do mais profundo de si — é como encontrar-se consigo mesmo e observar os seus próprios processos internos, suas saudades, suas angústias, seus desejos.

O álbum contém dez faixas, dentre as quais “O que Eu Não Te Contei”, com participação de João Donato, e é dividido em duas partes: o “Lado A – Coisas que precisam ser ditas”, que aborda a relação com o outro; e o “Lado B – Coisas que não precisam ser ditas”, que enfatiza a relação da compositora consigo mesma.

As músicas que compõem o álbum percorrem diversos ritmos musicais, passando por MPB, pop, R&B e indie. Essas esferas sonoras somam-se aos processos internos, harmonizando as melodias com os sentimentos, as reflexões e as sensações cantadas.

Na entrevista a seguir, Rafaella conta um pouco mais sobre ela e sobre a produção do seu álbum, que já está disponível nas plataformas de streaming. Você também pode seguir a Rafaella nas redes sociais [@rafaellamonnerat_ no Instagram].

INSPIRE-C: Conte um pouco sobre você. Quem é a Rafaella?

Rafaella: Acredito que sou uma pessoa bastante observadora e curiosa pelos porquês, pelas histórias, pelos sentimentos, pelos arquivos e caminhos. Gosto de pensar no que vai acontecer, e mais ainda na ideia de que, em parte, sou responsável por isso. Também amo suco de melancia, cheiro de fim de tarde de verão, notar que algum limite que eu coloquei teve uma consequência importante para mim, passeios de carro à noite, dançar, gosto quando a música que eu estou ouvindo combina exatamente com o que eu sinto e vejo, amizades de longa data, queijo com mel e bater papo por aí. Sempre gostei muito de ler, escrever e estudar, e estou cursando o 5º período de Psicologia na UFRJ.

“Rafaella” enquanto artista, atualmente, é bem eu mesma, porque tudo que produzi e já divulguei até hoje é bastante pessoal, o que não parece uma estratégia tão inteligente em termos de privacidade e proteção da exposição. Mas a música sempre foi a minha principal ferramenta de expressão genuína, então acho besteira censurar isso por medo do outro ou qualquer coisa do tipo.

INSPIRE-C: Como começou sua trajetória na música e como foi o processo de
composição e criação do álbum?

Rafaella: Desde que eu era pequena, minha mãe, minhas avós e tias sempre me rodearam de música de maneira muito intensa e presente em casa, nos passeios, festas e viagens —inclusive com votações informais para qual seria a “música do verão” —, e eu sempre amei ouvir e cantar junto. Também era levada a shows desde criança. Lembro que o primeiro foi do álbum Adriana Partimpim, no MAM, e fiquei fascinada! Comecei a ter aula de introdução musical cedo na escola, e logo entrei no piano clássico. Depois fui para o canto — o que eu mais amo. Quando virei pré-adolescente, quis aprender violão porque entrei em uma fase de maior timidez, então, ao mesmo tempo que queria uma habilidade que me permitiria, algum dia, se eu fosse capaz (deu certo, uhu!), me deslocar para os lugares e tocar com facilidade, também criava as tão preciosas horas de ficar tocando e cantando sozinha no meu quarto.

Junto do violão comecei a compor, por volta dos 13 anos, num estilinho bem adolescente revoltada, um misto de Clarice Falcão e Paramore (risos). Mais pra frente, quando mudei de escola, criei minha primeira banda, chamada Pescoço de Marreco, e começamos a fazer apresentações e gravações de covers e trilhas sonoras para projetos independentes. Tive a oportunidade de fazer um curso de performance de canto contemporâneo na NYU que foi fundamental para instalar em mim as noções de que: 1) realmente é isso que eu mais amo no mundo; e 2) compor é uma ferramenta sinistra. A partir daí, comecei a levar minhas composições bem mais a sério, e então saíram as primeiras canções de Cartas de Amor Para a Minha Janela. A primeira delas, “False memories”, foi escrita durante uma aula de Química do 3º ano do ensino médio, sendo esse um padrão curioso que foi se repetindo nos anos seguintes: ter inspiração para compor em ambientes acadêmicos, vai entender…

Ao todo, as faixas foram compostas entre os meus 16 (2018) e 19 (2021) anos, mas eu não fazia ideia na época de que elas iriam se juntar em um álbum!

INSPIRE-C: O que quer dizer Cartas de Amor para a Minha Janela, título do seu álbum de estreia?

Rafaella: O título do álbum pode ter algumas interpretações, uma mais filosófica e uma mais realista. A primeira e, na minha concepção, mais relacionada com a temática do disco, tem a ver com o ditado popular “os olhos são a janela da alma”. Justamente nessa ideia de que o álbum seria um mergulho para dentro, construir uma visão de si mesmo e de que todo o sofrimento que todos nós carregamos com afeto é extremamente difícil, mas fundamental, e o que eu, aos poucos, consigo fazer com a música. Ela me permite materializar dores e transformá-las em objetos que agora não estão mais só em mim e não pertencem mais só a mim. Nesse sentido, o álbum carrega arquivos de tentativas, em sua maioria falhas, de construir narrativas de vivências minhas com uma perspectiva intimista, de menos julgamento. No entanto, a maioria dos projetos artísticos que eu desenvolvo surge primeiro sem um motivo consciente claro, e eu que vou interpretando depois. A interpretação realista vem do fato de que estou há alguns anos no processo de mudança da casa em que cresci e construí toda a minha noção de mundo. E o meu quarto, de onde saem a grande maioria das minhas composições, tem uma janela em cima da cama pela qual eu sempre fui apaixonada, porque dá a vista para a natureza e bate um sol de fim de tarde muito lindo. Um dia, escrevi no meu caderno vários títulos de textos aleatórios que gostaria de escrever, e um deles era “Cartas de Amor para a Minha Janela”. Anos depois, quando já estava na faculdade, tive contato com o documentário Janela da Alma, do João Jardim, que fala sobre como diferentes graus de deficiências visuais afetam os indivíduos entrevistados, que vão do Hermeto Pascoal ao José Saramago e, por acaso, dias depois encontrei essa página específica do meu caderno. Já estava no processo de gravação do disco e tudo fez muito sentido. Me apeguei ao título e me divirto inventando novas interpretações para ele a cada vez que o leio.

INSPIRE-C: O álbum é dividido em duas partes: Lado A – As coisas que precisam ser
ditas; e Lado B – As coisas que não precisam ser ditas. A decisão de dividir
essas duas partes foi tomada já durante o processo de composição ou
acabou acontecendo quando o álbum ficou pronto? O que te levou a dividi-lo
assim?

Rafaella: Essa divisão surgiu quando o álbum já estava pronto e eu estava decidindo a ordem em que queria colocar as músicas. Eu ouvia todas elas repetidas vezes para encontrar padrões e identificar conexões, não necessariamente de estilo, mas principalmente de temática e sentimento entre elas. Acabei dividindo o álbum em dois lados, sendo o Lado A intitulado “Coisas que precisam ser ditas” e o Lado B, “Coisas que não precisam ser ditas”, por inspiração nos versos iniciais da música que marca a metade do álbum, “Quase um Abraço”. Essa canção, que é uma grande confusão de carência de afeto verdadeiro com vontade de voltar para coisas que não existem mais, começa com o seguinte trecho: “Ouvi o que você disse, mas não vai saber, tem muitas coisas que não precisam ser ditas, tantas. Faz anos que fiz pazes com o silêncio, caminhando pra aprender a ficar só, para que quando eu virar pó, eu tenha o meu melhor amigo comigo”. Eu considero essa música o ápice da vulnerabilidade. Começa com saliva, respiração e, por meio dos seus silêncios nas pausas da voz e piano, abre espaço para a mudança de estilos entre as duas partes do disco. As faixas do Lado A falam mais do eu lírico em relação a um “outro”, e no Lado B, em relação a si próprio.

INSPIRE-C: Dentre as faixas do álbum, tem alguma que é a sua favorita? Alguma que
representa um momento ou uma lembrança marcante para você?

Rafaella: A música foco “Concha” é muito marcante para mim, porque simboliza uma virada de autovalorização e autorrespeito necessários em qualquer relação, algo que só adquiri depois das aprendizagens vividas em todas as histórias contadas antes e, por isso, é a penúltima faixa do álbum. Eu a escrevi logo depois de uma briga intensa com uma pessoa que eu amo — nem lembro mais o motivo (risos) —, e ridiculamente a metáfora veio porque tinha uma concha na minha mesinha de cabeceira. É uma música de textura densa, com uma mixagem que realmente me faz sentir dentro de uma concha; enquanto “Mais uma Noite Assim” tem uma sonoridade que me lembra músicas de princesa que eu gostava de ouvir quando era pequena; “So I Just Wait” me remete ao mar pelo movimento que a vassourinha faz na caixa e “O que Eu Não Te Contei” tem inúmeros elementos sonoros que constroem um verdadeiro jardim, como o zumbido de insetos e o canto de passarinhos.

Parte do que eu tentei fazer nessas composições é explorar o máximo de sensações possíveis, então tem músicas mais noturnas e introspectivas, e outras mais animadas e diurnas. Curiosamente, lembro onde eu estava quando compus todas elas. Atualmente, tenho ouvido muito “Quase um Abraço”, porque fiz uma playlist de músicas que me lembram ela, como “Nuvem Negra”, da Gal Costa, “Águas Passadas”, do Guilherme Arantes e “Um Girassol da Cor do seu Cabelo”, do Lô Borges — essa playlist está no meu perfil do Spotify, inclusive. Todas são tão cruas e vulneráveis que tenho me sentido muito acolhida por elas nos meus trajetos diários pra faculdade e afins.

INSPIRE-C: Como foi lançar com João Donato?

Rafaella: Surreal! Uma oportunidade incrível e uma honra enorme. Sinto que aprendi muito com ele nos poucos momentos em que tivemos chance de trocar mais, já que quando gravamos a pandemia ainda estava bem restritiva. Mesmo assim, ele fez questão de criar um ambiente superconfortável, e estava muito entusiasmado no processo todo, inclusive topando na hora mesmo cantar comigo a frase “E até joaninha apareceu”, o que foi bem mágico. Sempre que ouço esse trecho na gravação não consigo não sorrir. Sou realmente muito grata por essa oportunidade de tocar não só com ele, mas com toda essa equipe de feras com quem aprendi tanto e sigo aprendendo. É muito reconfortante ver como o amor pela música une tantas pessoas tão especiais.

INSPIRE-C: O seu álbum reúne músicas de diferentes estilos e com muitas narrativas que dizem muito sobre processos internos, arrependimentos e ansiedades, experiências gostosas, lembranças, expectativas. Qual a mensagem que o álbum passa como um todo? E como você acha que isso reverbera e toca
quem o ouve?

Rafaella: Cartas de Amor para a Minha Janela vem de uma busca curiosa e afetiva por compreender como eu observo e processo meu mundo interno e, sendo assim, considero que trago com o álbum um convite a não ter tanto medo de olhar para dentro. Uma certa ode a tudo que pode surgir de belo e de terrível do silêncio. Nas letras, fiz um rearranjo de todo o caos presente nos meus diários. Antes era azul, hoje é preto, mas na maioria dessas músicas vemos recortes das páginas escritas no vermelho, que tive dos 16 aos 20 anos, me fazendo enxergar esse álbum como minha própria versão de um filme de passagem da adolescência para a vida adulta, os famosos “Coming of Age”. Com uma mistura de verdades e ironias presentes na relação das letras com as melodias, em cada verso deixei um pouco de contradição para que fosse sempre presente uma dúvida de se a interpretação do leitor diria mais sobre ele ou sobre mim. Com o produto pronto, hoje enxergo muitos padrões de pensamento e comportamentos meus de que não tinha noção ao longo do processo, o mais claro deles sendo como a temática do amor-próprio foi uma das principais desse período.

Ao longo do disco, pode haver diálogos que vão ser interpretados como se fossem com outras pessoas, mas na verdade são conversas minhas comigo mesma, é realmente uma verdadeira exposição do meu monólogo interno. Como eu sempre canto na minha perspectiva, mesmo quando abordo relações com outras pessoas, é criada uma certa intimidade que às vezes até me assusta, na medida em que as camadas musicais me fizeram explorar emoções que eu não seria capaz sem esse disfarce. Realmente, angústia, medo, saudade, admiração, amor e incerteza são todos sentimentos que exprimi à minha maneira nas músicas. Somos ensinados, em uma lógica muito maniqueísta, que existem sentimentos bons e ruins, e que os ruins devem ser reprimidos ou escondidos. Mas mesmo quando finjo ou fujo dos meus sentimentos, eles acabam transparecendo de alguma forma na música, seja num desconforto vocal ou numa nota que acaba indo para um lugar inesperado. Muitos compositores falam sobre isso, e acho que é uma das maiores magias na música. Inclusive, tem um trecho de uma canção que eu amo e que é bastante inspiradora pra mim, do Donny Hathaway, chamada “A Song For You”, em que ele diz: “Now I’m so much better, and if my words don’t come together, listen to the melody, cause my love is in there hiding”/“Agora eu estou muito melhor, e se ainda assim minhas palavras não fizerem sentido, ouça a melodia, porque o meu amor está ali, escondido”. Não sei o que vai acontecer com esse álbum, mas sei que fui muito verdadeira em todo o processo. Chorei gravando algumas músicas, ri em outras — uma das risadas, inclusive, ficou no corte final de “Quase um Abraço”, depois que eu falo “Quando eu era criança amava sorrir pra estranhos” —, e sinto que finalmente estou pronta para contar um pouco da minha história até aqui, até porque as artes que mais me tocam sempre foram aquelas brincam com a vulnerabilidade de todos os envolvidos, que é o que eu espero que aconteça com quem descobrir o álbum.

INSPIRE-C: O que te inspira?

Rafaella: Pausas. Repetir caminhos incontáveis vezes e mesmo assim achar algo não antes observado neles. O esforço necessário para manter as relações. Livros e canções infantis. Livros e canções sobre finitudes, da vida e do amor. Notar o corpo, notar os sentidos e da mesma forma ser capaz de ignorá-los e notar somente o externo. Quando cantores atingem aquela nota que deixa meu corpo todo arrepiado. Quando a voz falha porque a emoção vence. Pessoas que olham nos olhos com ou sem medo. A ideia de não desistir porque, de alguma forma, as coisas vão se conectar. Cogitar um sentido pra tudo isso. Não saber, mas sentir. Descobrir que sem saber eu já sabia. Respiração ofegante. Demian, GH, Esther, Macabéa e tantos outros personagens que me ajudaram a entender o mundo e a mim mesma um pouquinho mais. A exposição da Nise da Silveira no CCBB. A pergunta “O que é que você faz às três horas da tarde?”, que Fernando Sabino fez a Clarice Lispector em sua carta de 10 de junho de 1946. A pergunta “what does love sound like?”, escrita na parede da exposição da Lubaina Himid. Planetários, rios, lagos, museus, parques, cinemas, escolas e faculdades. O documentário sobre o casal de vulcanólogos Katia e Maurice Krafft. Inícios de música que vão do acorde C para E, tipo “Sea of Love” e “Lonesome Town”. A lista de gostos e desgostos da Amélie Poulain. E, principalmente, papéis: recortes de revistas antigas, a coleção de postais do meu pai, ingressos impressos, meus diários, desenhos que deixo e encontro soltos por aí, cartas e, o mais charmoso de todos, dedicatórias escritas à mão.

Clique AQUI e ouça o álbum Cartas de Amor para a Minha Janela.


Camila Barreto venceu o Projeto Escrita 2019. Atualmente estuda Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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