Por Camila Barreto
Obliterar: fazer desaparecer gradual ou definitivamente, fazer deixar de existir, suprimir. A primeira vez que ouvi essa palavra foi em uma aula de literatura portuguesa, e ela veio acompanhada das palavras “mulheres” e “cânone literário”. Isso porque durante o processo de formação canônica, muitas obras produzidas por mulheres ao longo da história foram obliteradas.
Meu professor, Horácio Costa, que é também um grande poeta, nos permitiu romper essa obliteração e nos apresentou obras de autoras portuguesas incríveis do século XVII, que acabaram ficando de fora do cânone. Conhecer essas escritoras e suas obras me mudou muito. Mulheres que escreviam textos espetaculares e extremamente relevantes, que tinham a sua autoria questionada, que ficaram de fora do cânone literário pelo simples fato de serem mulheres.
Hoje, quero apresentar duas das autoras que conheci. A primeira delas é Mariana Alcoforado, uma freira enclausurada em um convento. Lá, ela escreveu cartas de amor para o marquês francês Noel Bouton de Chamilly. A obra Lettres Portugaises (As cartas portuguesas) logo caiu no gosto popular dos franceses graças à sua temática sentimental e amorosa, tendo em vista, também, que a produção epistolar feminina circulava muito bem na França no século XVII. A questão da autoria das cartas é um tanto complexa, já que não há uma versão original em português, somente uma tradução francesa da obra. Isso corroborou para que muitos acreditassem que a obra pudesse ter sido modificada no processo de tradução, de modo que ela tenha sido “afrancesada”. E mais além: muitos não acreditavam que a obra tivesse sido mesmo escrita pela freira, uma vez que não existia o original em português. Pode ser que, de fato, as cartas não sejam de autoria da Mariana, mas, apesar disso, muitos estudiosos dizem que os cenários descritos nas correspondências só podem ter sido vistos do convento onde a freira esteve enclausurada.
Já no século XX, As novas cartas portuguesas, livro publicado por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa — que ficaram conhecidas como as “Três Marias” —, causa grandes ruídos na sociedade portuguesa. A obra, que tem como intertexto as cartas de Mariana Alcoforado, foi censurada e banida nos anos 1970 pela ditadura salazarista em Portugal, e suas autoras foram condenadas sob acusação de pornografia. O livro foi imediatamente traduzido nos Estados Unidos e na Europa, e gerou repercussão internacional pelo seu manifesto pelos direitos das mulheres, provocando uma corrente de apoio nunca antes vista na história da literatura portuguesa. Assim, a maior obra feminista de língua portuguesa encontra inspiração nas cartas de Mariana Alcoforado, que foram escritas três séculos antes, e isso revela não só a coesão da cultura, como também o poder do impacto atemporal de um texto.
Outra escritora que quero apresentar é a Marquesa de Alorna. Ela, que vinha de uma família sediciosa e superaristocrata, foi enclausurada em um convento feminino aos 8 anos de idade, onde ficou por 18 anos. Seu pai cuidava, a distância, de sua educação de preceptiva neoclássica, que era de extrema importância para a aristocracia, uma vez que a educação clássica fazia parte de um recorte social num contexto em que não havia instituições de ensino.
Ainda adolescente, a Marquesa de Alorna se notabiliza pela sua escrita poética — produto de sua educação — e passa a receber autores e intelectuais nos parlatórios do convento. Ao sair de lá, ela já tem uma expressiva notoriedade como escritora, e depois de viajar pela Europa com o seu marido, um conde alemão que se tornou embaixador na Áustria, ela capta o nascimento do Romantismo no continente.
Assim, ao retornar a Portugal, ela funda a Sociedade da Rosa, um salão cultural que fomentava a circulação de ideias e que foi fechado pela polícia da rainha Maria I, sob influência do medo, por parte da monarquia, da repercussão da Revolução Francesa. Depois de algum tempo exilada, a Marquesa funda um novo salão cultural, no qual se destacam, entre seus frequentadores ilustres, os escritores Bocage e Alexandre Herculano.
No que tange à sua obra, ela pode ser considerada um tanto subversiva para o Portugal dos séculos XVII e XVIII. Não era uma escrita feminina que falava sobre amor e coisas do tipo, pelo contrário; a poetisa falava de política, das relações internacionais entre Brasil e Portugal pós-independência, e também sobre despotismo e liberdade.
Por que não sabemos sobre essas mulheres? Por que elas ficaram de fora do cânone literário português? É fato que o cânone precisa ser revisado, renovado e diversificado. Às mulheres, cabe, na literatura — e em tudo o mais —, o espaço que lhes é de direito.
Fico imaginando como seria aprender mais, desde a educação básica, sobre mulheres que escrevem, mesmo enclausuradas em conventos; mulheres que são lidas, que são engajadas social e culturalmente, que se manifestam politicamente, que são revolucionárias à sua e à nossa época. Imagino, como mulher eu mesma, e torço para que as próximas gerações possam desfrutar de um cânone que seja abarcante e diversificado.
Camila Barreto foi a vencedora do Projeto Escrita 2019. Atualmente estuda Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.