Por Luciano Porto
Título Original: Muito além do dinheiro: a Governança do Patrimônio Familiar
Todo patrimônio decorre de um processo de acumulação, de uma disciplina combinada de superávit e de investimento. A acumulação pode ter sido trabalhada pelo próprio ou herdada, da primeira, segunda ou outra antiga geração, escreve Luciano Porto
Artigo publicado em 26 de janeiro de 2024 às, 10h22 / Exame / Caderno ESG.
(https://exame.com/esg/muito-alem-do-dinheiro-a-governanca-do-patrimonio-familiar/)
Pode haver algo em comum entre quem personifica a versão brasileira de um personagem da série “Succession” e um mero mortal, dedicado a organizar as suas finanças para o longo prazo de uma sonhada aposentadoria saudável.
Ambos tendem a buscar organizar o seu patrimônio acumulado, de modo coerente com as suas realidades, pessoal, conjugal, familiar, empresarial, social — levando em conta o seu momento, as suas posições e as suas atuais perspectivas de um futuro em constante reconfiguração.
Todo patrimônio decorre de um processo de acumulação, de uma disciplina combinada de superávit e de investimento. A acumulação pode ter sido trabalhada pelo próprio ou herdada, da primeira, segunda ou outra antiga geração. Pode ter origem legítima ou não, como delineia a impactante série “Vale o Escrito”.
Em algum momento, a pessoa titular do patrimônio tende a se perguntar: “O que faço com o que conquistei? Como organizar o futuro meu e daqueles que desejo ajudar? O que cabe a mim e o que foge ao meu controle?” Para responder a essas perguntas, necessitará dedicar tempo e atenção a fazer a sua auto-reflexão.
Precisará obter uma mínima compreensão de quem é, em que fase da vida está, o que tem, o que tende a juntar ou a gastar, o que quer. Qual a sua atitude perante o consumismo? Perante o seu protagonismo patrimonial? Quais as suas fontes de vitalidade? Qual a sua forma de se identificar e se apresentar? Qual a sua (in)segurança quanto aos cuidados que receberá na sua desejada longevidade?
Calibrada essa ótica individual, convirá perceber como vivencia a sua família, levando em conta as diversidades e dinâmicas das configurações familiares atuais. Como os seus familiares valorizam o patrimônio afetivo, reputacional, empresarial e financeiro da família? Há famílias que são “um por todos, todos por um”, e há famílias que são “cada um por si”.
Pergunte a si mesma/o qual é a sua métrica do seu sucesso ou do seu fracasso como empreendedor/a? Qual é a sua métrica do seu sucesso ou do seu fracasso como pessoa, como liderança familiar? Há sintonia ou dissintonia entre essas métricas? Ambiciona que a sua capacidade e percepção de sucesso seja continuada pelos seus descendentes, mesmo ciente de que “uma figueira não nasce na sombra de outra figueira”? Aplica algum critério métrico na sua percepção do desempenho deles? É uma métrica atualizada com relação à que vem utilizando para si?
A partir dessas reflexões, haverá muitas decisões a serem tomadas. Fazer contratos de namoro, de união estável ou casamento? Fazer pactos de regime de bens? Contratar previdência privada e seguro de vida? Fazer testamento, com disposições patrimoniais e vitais? Montar uma holding, um fundo exclusivo, um trust? Contratar os serviços de um multi-family office, ter o seu family office? Crescer, preservar ou gastar o patrimônio atual? Que tipo de risco quer tomar? Que tarefas quer delegar? Quem paga quais boletos?
Cada decisão tomada, ou reconsiderada, pode ser desdobrar em várias providências. Para grandes patrimônios familiares, há documentos regulando a governança do patrimônio familiar, em paralelo aos documentos que regulam a governança da empresa familiar.
Na governança patrimonial, regulam-se possibilidades de acesso familiar à gestão empresarial, bem como atividades que o family office poderá disponibilizar aos familiares de forma centralizada, como a gestão de seguros, manutenção residencial e veicular, logística de viagens, e apoio de concierge. Podem ser criados conselhos geracionais, unifamiliares, multifamiliares, para deliberações de governança específicas a cada um desses núcleos.
É verdade que exercer o protagonismo patrimonial pode ser um fator de poder e de união no convívio familiar. Mas quando você pretende apertar o botão que aciona a sua transição geracional na liderança patrimonial? Alguns recusam-se a aceitar a chegada do seu “outono do patriarca”, da matriarca ou de como prefira se identificar, adiando a transição para coincidir com a indesejada data da sua sucessão, essencialmente desconhecida.
Pode surgir aí uma combinação desastrosa, quando esse adiamento se soma com a vontade de usar o planejamento sucessório para interferir em escolhas de vida adulta dos herdeiros. É preciso cuidar para não pecar por ação ou omissão no seu planejamento sucessório, seja pela falta de cuidado na organização da sua sucessão, seja pela tentativa de excesso de intervenção na liberdade dos herdeiros.
Vivemos agora a véspera da transição patrimonial da geração babyboomer para a geração millenial. Convém lembrar que as futuras vontades dos herdeiros millenial afetarão a eficácia prática dos planejamentos de sucessão patrimonial dos babyboomers, inclusive porque as duas gerações podem ter visões patrimoniais distintas.
Por exemplo, temos hoje a situação da herdeira austríaca da BASF que, por questões éticas quanto o patrimônio herdado, recusa-se a recebê-lo, fazendo um chamamento público para doá-lo a interessados. Algo similar pode ocorrer com herdeiros millenial de patrimônios cuja origem possa ser percebida como tóxica, gerada por corrupção, poluição, armas, fumo, escravidão, etc. De outro lado, há iniciativas de babyboomers como a “The Giving Pledge”, onde bilionários, como o brasileiro Elie Horn, comprometem-se a deixar a maior parte de suas heranças para a filantropia, inclusive para incentivar uma postura mais ativa e livre em seus descendentes, que receberão heranças limitadas.
Em paralelo, vale lembrar que todas as iniciativas de governança patrimonial estão sujeitas também à interferência de agentes externos, nem sempre desejáveis pelo titular do patrimônio ou por seus herdeiros. Por exemplo, a interferência legislativa que inviabilizou a aplicação da separação de bens na ocorrência de sucessão; ou a interferência jurisprudencial que equiparou união estável e casamento. Sem falar na volatilidade das políticas tributárias, federais, estaduais e municipais, que impactam o longo prazo dos planejamentos sucessórios, com as oscilações de imposto de renda, imposto sobre causa mortis e doação, imposto sobre transmissão de bens e imposto sobre propriedades imobiliárias e veiculares.
Em “Muito Além do Jardim”, filme com o eterno Peter Sellers, a sabedoria simples de um jardineiro deu sentido a decisões complexas de poderosos. Muito além do que finanças, a governança do patrimônio familiar requer sabedoria e sensibilidade. Quem é você? Quem foi você?
Luciano Porto é especialista em ESG. Advogado e Conselheiro Independente CCA+ IBGC; para saber mais acesse www.lucianoporto.com.br
Foto de Anthony Tyrrell/Unsplash