Por Ronaldo Campos

Os mais recentes estudos genéticos comprovaram que as mitocôndrias encontradas nas células humanas descendem de uma única mulher que viveu na África entre 200 mil e 150 mil anos atrás. É isso mesmo o que você está pensando: somos todos parentes e descendentes da mesma mulher — carinhosamente batizada de “Eva Africana”.

O Homo sapiens era um ser nômade, ou seja, deslocava-se para coletar frutos e caçar. As mais recentes pesquisas demonstram que as primeiras migrações ocorreram da África para o Oriente (aproximadamente 100 mil anos atrás); com a espécie humana não é diferente, ou seja, a nossa história é repleta de deslocamentos em massa ou em grupos menores pela Terra. Ser migrante está em nosso DNA. Portanto, causa muita estranheza quando lemos manchetes que tratam da “crise migratória”. Como assim? Migrar faz parte da nossa origem e da nossa história. Não é uma crise! Somos todos migrantes. Estão querendo nos tornar hostis a nós mesmos!?

Pertencemos a uma tribo global onde não há um centímetro de terra que não tenha sido pisado pelo homem e/ou por seus predecessores. Kant meditou sobre os “imperativos” que precisariam ser observados quando isso ocorresse. Como viver em paz num planeta congestionado? Para ele, a hospitalidade é a única maneira de garantir a nossa sobrevivência. Segundo ele:

“A hospitalidade significa o direito que tem um estrangeiro de não ser tratado de forma hostil pelo fato de estar em território alheio. O outro pode desprezar o estrangeiro, se isso pode se realizar sem ruína deste, mas, enquanto o estrangeiro comportar amistosamente em seu posto, o outro não pode combatê-lo com hostilidade. Não há nenhum direito de hóspede em que se possa basear essa existência (para isso seria necessário um contrato especialmente generoso pelo qual se limitasse o tempo de hospedagem), mas um direito de visita, direito de apresentar-se à sociedade, que têm todos os homens em virtude do direito da propriedade em comum da superfície da Terra, sobre a qual o ser humano não pode se estender até o infinito, por ser uma superfície esférica, tendo que se tolerar uns juntos aos outros, e não tendo ninguém originariamente mais direito que o outro de estar em um determinado lugar da Terra.” O que Kant reivindica é a substituição da hostilidade pela hospitalidade.

É importante notar que não se trata de uma apologia para o fim das nações e sim um direito de se associar, de se tolerar uns aos outros. É preciso que haja uma interação amigável para se estabelecer laços de amizade mutuamente benéficos. É preciso ter compaixão, é preciso entender que se migra por necessidade e não por lazer ou pelo simples desejo de ocupar outras terras. A migração é um ato duro e de grande sofrimento. O que está acontecendo hoje é a mitigação das obrigações morais. Infelizmente, passamos a acreditar apenas nas ações solidárias de curta duração, achando que são suficientes para dar conta das obrigações morais. Aprendemos a conviver com o “nós” e “eles”. Assim, alimentamos a todo instante uma divisão do ser humano como se houvesse mais de uma espécie humana.

A migração em massa está e estará cada vez mais presente na era moderna. Ela é consequência do que se chama de “progresso”, ou seja, criou-se condições para que cada vez mais surjam pessoas redundantes, que perderam sua força econômica e que são vistas apenas como consumidores. Pessoas que se tornaram “irrelevante” para um mercado de trabalho cada vez mais complexo, competitivo e dominado por poucos. Exige-se uma capacitação profissional inacessível para a maioria das pessoas que são obrigadas a se reinventarem a cada novo lançamento tecnológico. É preciso compreender que as pessoas migram para não morrer de fome, para não serem escravizadas ou assassinadas. É preciso ver a migração como uma luta pela sobrevivência.

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