Por Camila Barreto

Quando falamos de cidade, inevitavelmente falamos das relações de trabalho envolvidas no seu contexto, pois estas influenciam o espaço geográfico e também são influenciadas por ele, posto que se trata de uma relação dialética. O processo de urbanização da cidade de São Paulo ao longo do século XX abarcou diversos fatores relacionados ao seu contexto socioeconômico. Desde a abolição à industrialização, a mudança na base do trabalho mudou também a geografia da cidade.

Uma das principais mudanças da São Paulo cafeeira para a São Paulo industrializada é a segregação espacial mais bem definida. O eixo de industrialização linear ao longo das rodovias permitiu maior concentração de pessoas nessas áreas, e não é preciso dizer que com a abolição e o aumento da imigração houve um boom populacional na cidade.

O aumento demográfico tem como consequência o aumento da demanda por habitação num modelo de expansão que era, a princípio, horizontal. Os cortiços espalhados pela região central da cidade são exemplos das primeiras formas de segregação espacial. Massas de operários despossuídos que não foram beneficiados pela urbanização moderna e bela habitavam lotes de terrenos que eram divididos entre cômodos compartilhados por muitas pessoas. A única preocupação do Estado para com os cortiços era quanto à “periculosidade e a promiscuidade” que proliferavam nesses lugares, o que ameaçava a saúde e a moral da cidade — argumento que assegurava a coerção, o higienismo e a aporofobia.

A partir daqui, é possível conceber essa geografia social da metrópole que persiste até os dias de hoje. Em seu livro São Paulo: o planejamento da desigualdade, a professora, arquiteta e urbanista Raquel Rolnik explica que desde o seu nascimento, o movimento da cidade é centrífugo, de modo que delimita as margens da zona urbana ou até mesmo da zona rural como locais propriamente destinados aos mais pobres. Isso faz com que os cortiços, que antes ocupavam as regiões centrais, migrem para as bordas, e permite que a urbanização moderna à francesa avance pelas áreas destinadas às classes altas. Nascem, assim, as periferias.

A crise habitacional ainda assola agudamente a metrópole. Dados do Censo de 2022 apontam um agravamento da questão habitacional, uma vez que na capital paulista existem quase 590 mil moradias vazias, 12% do total, e isso é o dobro do registrado no Censo de 2010. Em contrapartida, de acordo com os dados, 400 mil famílias não têm moradia digna. A matemática é muito clara: tem mais casa sem gente do que gente sem casa. Mas por que essa conta não fecha? Além do fato de as políticas habitacionais serem insuficientes e pouco eficazes, a discussão sobre a ocupação da cidade não é pautada sem o viés lucrativo e devorador do mercado.

Outra problemática entra em jogo quando consideramos o contexto atual da cidade. A recente aprovação da revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo acende um alerta para a ocupação desgovernada, além de abrir margem para a privatização de equipamentos públicos. A revisão também fragiliza a expectativa de construção de habitações de interesse social, e pode, ainda, ter um grande impacto ambiental, uma vez que a ampliação das áreas de construção pode avançar sobre reservas e espaços verdes da cidade.

Ocupar a metrópole da desigualdade e sobreviver a ela é um desafio diário. Para quem mora na periferia, isso implica pegar diversas conduções ou fazer pelo menos duas baldeações entre trem e metrô para ir trabalhar, estudar ou simplesmente passear pela cidade. Ocupar a cidade inclui, antes de tudo, morar com dignidade e segurança, usufruir do espaço geográfico, dos equipamentos culturais — que ficam quase todos amontoados ao redor dos bairros ricos e das faixas empresariais. A maior lenda urbana dos dias de hoje é a cidade moderna e democratizada. Da ponte pra cá, para citar o título da música dos Racionais, a realidade é de luta diária pelo direito à cidade, e parece que seguimos perdendo.


Camila Barreto venceu o Projeto Escrita 2019. Atualmente estuda Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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