Por Mariana Weissmann
Tradução: Cesar Castromonte Flores
Diagramação e adaptação: Ronaldo Campos
A primeira coisa que eu gostaria de dizer é o fato de que é um “golpe de sorte” poder ganhar a vida fazendo o tipo de trabalho que você mais gosta. Minha sorte começou quando eu nasci numa família culta de classe média na Argentina, um país onde a mulher não é discriminada com respeito à educação superior. A sorte continuou quando eu ingressei na faculdade, no período em que a Universidade de Buenos Aires estava começando a melhor época da sua história. De fato, nos anos 60 havia grande entusiasmo na esperança de que a educação, em particular a ciência, seria de grande ajuda para a população dos países subdesenvolvidos. Provavelmente foi esta “disposição” mundial que inspirou o Professor Abdus Salam a criar o ICTP naquele tempo, como um lugar de encontro para os físicos dos países desenvolvidos e não desenvolvidos.
Eu escolhi estudar ciências principalmente porque eu gosto de pensamentos abstratos, era boa estudante na escola, e era curiosa. Eu não fazia ideia de quanto tempo esse interesse duraria e jamais pensei nele como uma carreira. Só vários anos depois reparei que a física tinha se transformado em uma parte importante da minha vida. Atualmente, estando próxima a me aposentar, percebo que novas novelas, novos filmes ou jogos me fazem lembrar outros já vistos, um efeito “déjà vu”, enquanto que os jornais de física geralmente me surpreendem com alguma ideia nova, alguma coisa que eu não tinha pensado antes.
A vida dos cientistas na América Latina não tem sido muito tediosa; muitos de nós fomos forçados a ir de um país para outro. Alguns decidiram ficar nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental onde têm empregos permanentes, porém muitos de nós ficamos na região e temos vivido em diferentes lugares, algumas vezes devido à perseguição política, mas na maioria das vezes devido a políticas absurdas. Nos últimos 30 anos, poucos dirigentes políticos compreenderam o valor da pesquisa, e por causa disso não levaram em conta que a criação de grupos de pesquisa requer um tempo longo enquanto que a destruição dos mesmos é um processo muito rápido. O Professor Salam deu palestras acerca deste tema em diferentes momentos e lugares, mas nem sempre foi compreendido.
Minha busca pessoal incluiu uma bolsa (paga pela Universidade de Buenos Aires) para fazer a pós-graduação no Instituto Tecnológico da Califórnia. Após meu retorno, defendi minha tese de doutorado em Buenos Aires e fui nomeada Professora Assistente no recém-criado Departamento de Meteorologia. Ensinei física atmosférica e colaborei com um grupo experimental interessado no estudo de formação de nuvens, para prevenir a queda de granizo numa região produtora de vinho. Meu trabalho de pesquisa foi teórico, estudando as propriedades da água, gelo e uma solução de IAg. Para isto, eu usava um computador Mercury, o primeiro instalado na América Latina. Era um monstro britânico, cheio de válvulas, que localmente foi chamado de Clementina, que precisava da manhã inteira pra aquecer. À tarde e à noite era compartilhado por estudantes e professores de pós-graduação, os quais se sentiam com muita sorte por ter acesso a tal facilidade moderna.
Estes tempos felizes acabaram em 1966, com uma intervenção militar que ocupou a Universidade e produziu a renúncia de aproximadamente 1.000 professores, muitos deles cientistas. Nossa liderança latino-americana em ciências da computação foi perdida, e nunca mais foi recuperada. Eu fui então convidada para um estágio de pós doutorado nos Estados Unidos, de onde posteriormente voltei para esta parte do sul da terra como pesquisadora na Universidade do Chile. Nos quatro anos seguintes morei em Santiago, de onde saí em 1972, um ano antes da ocupação militar de Pinochet. Desde aquele tempo mantive um contato próximo e uma verdadeira amizade com meus colegas chilenos. Durante este período nós fomos honrados com a visita do Professor Vladimir Tolmachev que chegou de Moscou, e nos ensinou a usar os diagramas de Feynmann para a física atômica e a do estado sólido. Nossos estudantes daqueles anos estão entre os melhores físicos chilenos de hoje.
Voltando para Buenos Aires, fui nomeada para o Conselho Nacional de Pesquisa como pesquisadora, e desde aquele época venho trabalhando nos laboratórios da Comissão de Energia Atômica em Buenos Aires. Durante os anos 1979-81, fiquei de licença na Universidade Simon Bolívar em Caracas, Venezuela. Meu trabalho de pesquisa dos últimos 30 anos esteve relacionado com os efeitos de desordem, ou não-periodicidade, nas propriedades de materiais. Os assuntos estudados foram: sólidos amorfos e incomensuráveis, superfícies, blocos e moléculas grandes. Semicondutores, supercondutores a alta temperatura, multicamadas magnéticas, fulerenos, são alguns dos materiais estudados. No início, colaborei com meu orientador de doutorado, Professor Norah Cohan, mas desde 1985 alunos da pós-graduação da Universidade de Buenos Aires vêm fazer o seu trabalho de pesquisa comigo. Cada um deles estuda um sistema diferente, seja desenvolvendo seus próprios programas de computador, ou, mais recentemente, usando alguns programas padrões disponíveis. Eu me sinto muito orgulhosa porque todos eles são agora físicos ativos, seja na Argentina ou na Europa, e nós estamos muito próximos.
O ICTP teve um papel importante na minha vida científica, primeiramente como membro Associado e posteriormente como membro Sênior. Foi o lugar onde pude discutir minhas dificuldades com colegas mais experientes, um lugar onde eu percebi quais problemas seriam relevantes num futuro próximo e o que poderia ser de grande ajuda para guiar o trabalho dos meus alunos de pós-graduação. A capacidade do Professor Norman March para organizar o grupo de estado sólido, escutando pacientemente a cada um de nós quando apresentávamos nossos problemas físicos, deve certamente ser lembrada. O ICTP foi também o lugar para fazer amigos, e aprender as diferenças e similaridades dos problemas da nossa profissão em diferentes países. A generosidade é a qualidade que eu sempre admirei nas ideias originais do Professor Salam. O Centro nunca impôs atividade nenhuma aos seus membros, cada um fazia o que era capaz de fazer. Eu me lembro que no início algumas pessoas só xerocopiavam livros para as suas bibliotecas, mas após um certo tempo, realizaram interessantes trabalhos de pesquisa e posteriormente enviaram seus próprios alunos para o ICTP.
É realmente um prazer celebrar os 40 anos desta generosa instituição, ainda mais necessária agora do que quando foi fundada. A globalização só tem incrementado a separação entre lugares desenvolvidos e não-desenvolvidos, assim eu desejo sinceramente que o ICTP mantenha o espírito da sua fundação por muitos anos ainda.
Mariana Weissmann | CAC, CNEA
San Martin | Província de Buenos Aires | Argentina
Este artigo é de domínio público. Foi transcrito da coleção Algumas razões para ser um cientista com o objetivo de divulgar, desmistificar e estimular o estudo da ciência, principalmente entre os jovens.