Por Camila Barreto
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A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife…
[…]
(Evocação do Recife, Manuel Bandeira)
No dia 5 de maio comemoramos o Dia Mundial da Língua Portuguesa. O português está entre as dez línguas mais faladas no mundo, é o idioma mais falado no Hemisfério Sul e está presente em quatro continentes. Segundo estimativas das Nações Unidas, até o final deste século o número de falantes de português chegará a 500 milhões. Além disso, a língua é de extrema importância cultural e histórica para a humanidade.
Não é novidade para ninguém que o português que falamos hoje não é o mesmo português falado por Pedro Álvares Cabral quando aqui ele desembarcou com a sua tripulação, no século XVI. E também sabemos que a língua que falamos é muito diferente do português falado hoje na Europa e em outras partes do mundo. Mas, afinal, o que é o português brasileiro?
A nossa língua começou a ser formada ainda no século XVI, quando os portugueses recém-chegados à costa brasileira começaram a ter contato com a principal língua falada por lá, o tupi antigo. Essa foi a língua que se difundiu pelo Brasil nos primeiros séculos e originou as línguas gerais amazônica e meridional, no século XVII. Para que fosse possível adentrar o país pela costa e cristianizar os indígenas daquela região, os portugueses, e principalmente os padres jesuítas, se apropriaram dessa língua. E por dois séculos, o tupi foi a principal língua de intercurso do sistema colonial brasileiro, utilizada por indígenas, africanos escravizados e europeus.
O desenrolar dessa história, como sabemos, envolve o massacre dos povos indígenas e o glotocídio, isto é, a imposição violenta da língua portuguesa sobre as demais línguas que aqui existiam, que culminou no enfraquecimento e até mesmo no desaparecimento de muitas línguas nativas. Naquela época, os padres jesuítas não mediram esforços para açular os indígenas a adotar o idioma europeu, e chegaram a apelar para a encenação de peças nas quais Deus falava português e o diabo, tupi.
Ainda assim, a língua tupi foi bastante disseminada ao longo do tempo. Fez parte da literatura colonial, do Romantismo e do Modernismo brasileiro, e hoje em dia compõe o léxico do português falado no Brasil, uma vez que muitas palavras e expressões que conhecemos e utilizamos para nos referir principalmente à fauna, à flora e aos topônimos brasileiros são de origem indígena.
Nesse processo de formação, não podemos esquecer que muitos traços de outras línguas também foram incorporados ao português brasileiro, como aqueles advindos das línguas europeias — vide o francês e o espanhol —, de outros falares que aqui já existiam e lutavam para preservar sua existência, e também das línguas africanas. Segundo o pesquisador e linguista Dante Lucchesi, professor titular de Língua Portuguesa da Universidade Federal Fluminense, até meados do século passado as influências das línguas africanas eram ignoradas devido à supervalorização do português europeu, sendo que essa ideologia conservadora julgava as influências africanas e indígenas como deturpações da língua.
A língua portuguesa do Brasil é, ainda hoje, uma colcha de retalhos, um processo de redescobrimento e renovação. A nossa língua-mãe, autêntica e singular, é viva, desdobra-se de norte a sul em um florir de prosódias e dialetos, e coexiste com 154 línguas indígenas que lutam para preservar a sua história e a sua identidade. Conhecer a história da nossa língua nos permite entender a razão pela qual o português brasileiro é tão diverso em si, e também quão necessário é preservar e revitalizar as línguas indígenas que aqui existem, para que a história de destruição e preconceito não se repita.
Cada parte dessa mistura linguística está presente no modo como falamos. Cada língua falada aqui conta mais sobre nós mesmos e sobre a memória do nosso país, porque a nossa língua está indissoluvelmente ligada à nossa identidade. A língua de um povo é a sua história e a sua cultura, e, portanto, quando não conhecemos intimamente a língua que falamos, não somos capazes de compreender o que é ser brasileiro. Se a nossa pátria é a nossa língua, como escreveu Fernando Pessoa e cantou Caetano, sejamos, então, poliglotas na nossa na nossa língua-mãe e lutemos para preservar as nossas identidades.
Camila Barreto foi a vencedora do Projeto Escrita 2019. Atualmente estuda Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.