Por Gustavo Izidio Silva
As obras de Clarice são incomparáveis quando pensamos em demais autores aclamados e reconhecidos da literatura brasileira. As fases em que se consolida o ideário modernista e vanguardista, iniciado em 1922 com a Semana de Arte Moderna, dão margem à projeção de um Brasil recém-descoberto, suprimido pela história e desprezado pela cultura. Macunaíma, de Mário de Andrade, insere o folclore, a cultura e a tradição popular, o mito e a lenda como elementos fantástico-realistas à vida de um homem indígena, rompendo e desestruturando perspectivas conservadas do Romantismo a respeito dos povos endógenos e, por consequência, da própria formação e cultura do Brasil.
Em 1930, um amplo tecido de escritores sobrevém à tona revelando o Nordeste enquanto região viva e pungente do Brasil, mas dilacerada por duas forças conflitantes: a seca, árida e voraz, que traz padecimento e morte; e a sociedade, que, desprezando e suprimindo sua existência, provoca-lhe abandono, desesperança e “despatrialização”. Nomes como Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Lins do Rego desentranham, em literatura riquíssima, um Brasil profundo e esquecido, que há milênios pedia expressão. Nessa época também, Erico Verissimo tece com poderosa habilidade da palavra o Rio Grande do Sul de sua infância, de sua lembrança e de seu não convívio. Ao publicar Clarissa, em 1933, ele dissemina a esperança de um Brasil que parecia em ampla progressão e desenvolvimento, onde a modernidade e a urbanização bebiam da tradição para se construir. Amaro e Clarissa se tornam metáforas de uma Porto Alegre que parecia crescer em correspondência à alcunha que lhe fora concedida. Parecia crescer alegre, abrindo seus portos ao mundo e alcançando espaços inimagináveis.
Clarice, no entanto, buscou outras possibilidades de narrativa que não aquela em vigência no momento: sem falar do interior do Brasil, falou do interior do ser humano, sem que para isso fugisse do território brasileiro. É, porém, na Revolução Romanesca, advento de alterações profundas no romance, que se pode concluir a verdadeira alteração nos campos literário e cultural do Brasil que Clarice provocou. Como demonstra Benedito Nunes, já em Perto do coração selvagem, seu romance de estreia, Clarice revela uma tendência adepta à revolução romanesca que se insurgiu em sua época, questionando as estruturas do gênero narrativo, “ao cabo da qual a ficção questiona o real questionando-se a si mesma” (NUNES, 2021).
Para Nunes, no romance moderno, o fluxo de consciência surge enquanto elemento que substitui a coerência episódica dos acontecimentos, a causalidade narrativa. Além disso, desaparece o narrador onisciente, cuja existência pressupunha tudo saber a respeito do mundo e das personagens. O autor defende também que a revolução da forma e do conteúdo do romance “é precedida por uma concentração da mimese na experiência interior […] paralelamente à passagem da introspecção ao primeiro plano da narrativa” (NUNES, 2021). Clarice Lispector encontra nessa perspectiva da Revolução Romanesca seu caminho para a expressão literária. “[…] nos romances de nossa escritora, a verdadeira ação é interna e nada ocorre independentemente da expressão subjetiva do protagonista, cujo aprofundamento introspectivo condiciona a estrutura da narração”.
Referindo-se à Revolução Romanesca, Anatol Rosenfeld (1969), em “Reflexões sobre o romance moderno”, discute, com aprofundamento, as bases constitutivas dessa nova possibilidade do gênero e como ele se manifesta. Em termos gerais, o autor defende que o romance moderno rompe com a consciência, com a causalidade, com a integridade do ser humano, apresentando um mundo dilacerado, fragmentado e verdadeiro. De suas palavras: “A visão de uma realidade mais profunda, mais real, do que a do senso comum é incorporada à forma total da obra” (ROSENFELD, 1969). Por fim, ele afirma que os elementos do romance, sobretudo as projeções de espaço e tempo, são fórmulas dependentes das formas subjetivas da consciência. Tudo é, antes de mais nada, interior e íntimo. Nossas impressões dão forma ao mundo.
Portanto, Clarice Lispector funda em nosso espólio literário uma manifestação narrativa própria, com fisionomias particulares, perspectivas únicas, mas inseridas, ao menos nas raízes de sua formação, semelhanças com um movimento de transformação estilística já existentes, por exemplo, em nomes como Virginia Woolf, James Joyce, Katherine Mansfield, entre outros. Clarice possuía plena consciência de sua literatura, reconhecia o que seus textos representavam para o contexto literário-cultural do Brasil. À amiga e companheira Olga Borelli, ela revela essa consciência ampla, dando-nos a certeza de que Clarice não é alheia à realidade, mas ao falar do mais profundo do ser humano, em contato com o mundo, ela desnuda-o em verdade e beleza. Ela apresenta-nos o real, que é sempre íntimo:
Os meus livros não se preocupam muito com os fatos em si porque, para mim, o importante não são os fatos em si, mas as repercussões dos fatos no indivíduo. Isso é o que realmente importa. É o que eu faço. E penso que, sob este aspecto, eu também faço livros comprometidos com o homem e a sua realidade, porque a realidade não é um fenômeno puramente externo
(Carta a Olga Borelli, Rio, 29 de setembro de 1975).
Referências
AUGUSTA, C. Cartas de Clarice Lispector: desnudos de uma estrangeira. Revista
Unicentro, v. 5, n. 2, 2014. Disponível em: https://revistas.unicentro.br/index.php/revista_interfaces/issue/view/196.
LISPECTOR, C. Todas as cartas. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2020. p. 781-782.
NUNES, B. Filosofia e literatura: a paixão de Clarice Lispector. Revista
Apoena, UFPA, v. 3, n. 5, 2021. Disponível em: http://dx.doi.org/10.18542/apoena.v3i5.11613.
ROSENBAUM, Y. Folha Explica: Clarice Lispector. São Paulo: Publifolha, [s.d.].
ROSENFELD, A. Reflexões sobre o romance moderno. In: ROSENFELD, A. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969.
Gustavo Izidio Silva é um grande apreciador da literatura brasileira. Atualmente estuda Letras – Português e Latim na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.