Heitor Dhalia
Resumo: Ainda que existam jogadas preestabelecidas, o bom enxadrista encontra novos caminhos e soluções ao longo de uma partida, de acordo com as jogadas de seu oponente. Ao lidar com novas complicações, o jogador lança mão do improviso por meio da reinterpretação de conceitos, apesar das tentativas de seguir um plano. Na arte, o improviso surge como um campo fértil para a fruição de ideias, o que não deveria dispensar um conhecimento técnico sobre o assunto a ser tratado, nem a habilidade de dar conta de questões práticas como prazos e orçamentos.
Palavras-chave: Improviso. Xadrez. Arte. Técnica.
Por definição, improviso é tudo aquilo que é feito “sem preparação, sem ensaio prévio”. Essa ideia nos leva a duas correntes antagônicas de pensamento. A primeira seria a de que qualquer improviso seria ruim por decorrer de uma situação sem estudo, sem pensamento, algo feito às pressas. A outra vertente advogaria a supremacia do improviso porque este traria maior naturalidade, impulso de corrente do momento e, portanto, traria uma verdade maior.
Para travar um debate entre essas duas correntes, vou usar dois campos distintos como exemplo. O xadrez e a arte.
No xadrez, temos a percepção de que tudo é calculado, planejado e, portanto, um lugar em que o improviso não existe. Essa ideia é absolutamente falsa.
Uma partida de xadrez sempre começa com as aberturas. As aberturas são várias e diversas — cada uma delas contém uma linha de raciocínio distinta, a partir do primeiro movimento das peças brancas. Este primeiro movimento é sempre uma iniciativa, um plano de ataque, uma pergunta. As pretas, por sua vez, respondem sempre com uma defesa. As defesas também são várias: a Siciliana, a Francesa, a Rui Lopez etc. E daí o jogo começa com um plano mais ou menos traçado. As defesas são amplamente estudadas e todas elas buscam os mesmos princípios: dominar o centro, desenvolver as peças e obter uma vantagem posicional ou material.
E cada jogador tenta seguir um plano. As peças não são movidas à toa, sem propósito ou seguindo apenas o instinto do jogador. Ninguém age no improviso, portanto.
Mas o jogo segue e logo estamos no meio do jogo, quando começam as complicações. Rupturas estão prestes a serem feitas, peças são trocadas.
Os planos de cada jogador se tornam mais evidentes. Novas perguntas são feitas e violentas respostas são dadas.
Aqui, por mais cálculo que exista, estamos no território do improviso total. Todos os lances decorrem do improviso. Por uma simples razão: existe um antagonista que tenta o tempo todo prevalecer, trazendo novas complicações. O antagonista encurrala, ameaça e torna o jogo cada vez mais difícil e perigoso.
A cada lance novo abrem-se dezenas de possibilidades para cada jogador. A partida acontece nos dois lados do tabuleiro, centenas de cálculos são feitos a cada minuto. Você improvisa rigorosamente a cada lance. Mas é um improviso pensado, medido. Ele decorre de conceitos que estão postos desde o começo e são reinterpretados o tempo todo.
Aí chegamos ao ponto. O bom improviso nasce de um conceito, de uma ideia, de uma matriz de pensamento de onde tudo nasce.
Agora vamos fazer a transição do xadrez para a arte. E existe, sim, um ponto de ligação entre esses dois mundos. O Duchamp dizia que: “Nem todo artista é um enxadrista, mas todo enxadrista é um artista”. Os milhares de combinações no xadrez fazem deste um jogo lindo e emocionante, apesar de não parecer para quem não o joga.
Na arte que, por definição, seria o território da experimentação, o improviso teria um lugar mais natural. As coisas deveriam fluir mais livremente numa obra de arte, portanto.
“Para que o improviso vire plano, faça sentido, tem um ponto de partida e um ponto de chegada.”
O desejo do artista seria um território amigo, em que todo improviso seria bem-vindo, lugar natural da verdadeira subjetividade.
As complicações dessa ideia surgem de imediato. Não existe arte sem técnica, sem elaboração. A arte é uma busca eterna pela excelência, pelo rigor estético e pelo conceito proposto pelo artista. Aqui, o improviso em si mesmo não leva a lugar nenhum. Mas aqui também o improviso, a partir de um conceito, pode levar a lugares inesperados e maravilhosos.
Cito o exemplo de escritores que não planejam nada antes de começar a escrever e são surpreendidos o tempo por seus personagens e pelo rumo que a história vai tomar. O navio sai sem rota e sem lugar para chegar. O instinto guia cada palavra, cada ação dos personagens. Mas até esses bravos guerreiros do improviso sempre partem de um conceito, de uma ideia forte que eles querem investigar. Não é um improviso total, um plano vai se desenhando, mesmo sem muito planejamento ou visualização. Esses improvisadores vão conceituando o tempo inteiro. Para que o improviso vire plano, faça sentido, tem um ponto de partida e um ponto de chegada.
A esses escritores se opõe um outro grupo que não escreve uma linha sem que tudo seja antes pensado, idealizado, planejado como uma obra de arquitetura ou engenharia. Aqui o improviso se dá em dois momentos. No marco zero, onde ainda não existe nada, naquele lugar onde as ideias nascem. Mas essas ideias logo são submetidas ao um escrutínio, são adequadas a um plano. O improviso acontece na maternidade e sobrevive ou não pelo rigor de uma crítica no ponto inicial.
Para esses escritores, o plano se desenha de imediato, porém, na fase execução da obra, o improviso volta a ter lugar, porque apesar do plano rígido de jogo, problemas e questões surgem o tempo todo. E assim, o escritor tem de buscar novos caminhos, novas soluções. Ele é obrigado a improvisar para que o plano inicial possa dar certo.
No cinema, esta ideia é ainda mais radical, porque o plano, que é o roteiro, está condicionado a questões reais, como orçamento, atores de carne e osso, locações reais, e tudo acontece no mundo de verdade, onde as coisas nem sempre saem como o previsto. Aliás, quase sempre não saem. Os ajustes acontecem o tempo todo.
Como a arte imita a vida (ou seria o contrário?), Kasparov, o lendário campeão de xadrez , escreveu um livro intitulado Como a vida imita o xadrez. Esse paradoxo é posto em pauta, como metáfora. E a arte é, sim, um espelho da vida. Um espelho em que a realidade é, na verdade, expandida. Tentamos o tempo todo dar significado ao caos que nos cerca. A vida é caótica por definição. E a nossa tentativa é buscar algum tipo de sentido. Isso se dá o tempo todo, em todos os aspectos da vida social, no esporte, na religião, nas artes em geral.
Estamos o tempo todo improvisando na busca de sentido. E todo improviso é válido e nos ajuda a seguir nesta jornada de tantos antagonistas que enfrentamos durante uma vida. As outras pessoas, as questões familiares e financeiras, as doenças, os amores, as desilusões, as estruturas de poder. A lista de antagonistas é grande e não termina. O ser humano é este ser angustiado que alterna da falta de esperança ao entusiasmo, com esta vida efêmera e gloriosa.
Todo improviso nos salva e nos eleva, mas para isso é preciso um conceito, um partido, uma ideia. Caso contrário, como acontece em algumas manifestações da arte contemporânea, vamos do nada ao lugar nenhum.
Se a ideia é provar o vazio da existência, tudo bem. Mas se não é isso, a arte perde força. Este improviso não ajuda em nada a desvendar as questões do ser humano. Todos nós, na verdade, é que somos obrigados todos os dias a improvisar para continuar existindo.
*Heitor Dhalia é Pernambucano e Cineasta. Com extensa produção, tem em seu currículo a direção de longas-metragens aclamados pela crítica, participando de diversas mostras e festivais internacionais. Nina (2004), O cheiro do ralo (2006), À deriva (2009) e a produção hollywoodiana Gone (2011) compõem essa lista, além do documentário On Yoga – The Architecture of Peace (2017) e da atuação dupla como diretor e roteirista em Serra Pelada (2014), seu último longa nacional. Atualmente lançou Tungstênio e está na fase de finalização do seu novo longa-metragem Anna.