Por Mainá Santana
Resumo: Improvisar não significa abandonar parâmetros ou resolver problemas de qualquer maneira. Por mais que desejemos controlar ambientes, para criar qualquer situação de trabalho há que se ter espaço para o acaso. Aceitar esse elemento da vida é importante, bem como aprender a lidar com ele. O autoconhecimento, a compreensão de que o outro tem experiências diversas e a definição de regras comuns entre os pares parecem ser boas ferramentas.
Palavras-chave: Improviso. Autoconhecimento. Parâmetros. Crenças. Capoeira. Flexibilidade.
Se você já viu ou entrou em uma roda de capoeira, possivelmente percebeu o nível de atenção e presença envolvido neste jogo-dança-luta. Os pés dos jogadores estão despertos no chão, o corpo malemolente à queda, aos adversários e ao espaço. Um movimento responde ao outro, num diálogo entre os planos diferentes, em que o corpo ginga em pé, no chão ou agachado, colocando-se em situações de risco sem demonstrar tensão. Chutes de um, desvio do outro; ninguém entra na roda sabendo o que vai acontecer com uma antecedência maior que alguns segundos. A beleza dos golpes e saltos se aprende fora da roda, partindo de experiências diversas com o corpo, do corpo em relação ao espaço e em relação ao outro (inclusive, a capoeira aparece no início da sociedade colonial urbana, com o diálogo entre as diversas danças e artes marciais trazidas por pessoas de várias etnias africanas presentes nas cidades brasileiras do século XVIII¹). Apesar disso, só se aprende a jogar capoeira jogando, entendendo os parâmetros que a sustentam: o acaso, o limite do espaço, a música, a agilidade dos movimentos, entre outros.
A capoeira traz elementos para discutirmos algumas esferas da vida. É possível perceber sua lógica em espaços como o de trabalho quando relacionamos a ideia de improviso à palavra flexibilidade. Digamos que um cliente liga para uma empresa com uma demanda não prevista em contratos. O atendente pode dizer que aquilo não estava previsto e declinar da demanda, ou tentar negociar, de forma a ceder mais ou menos à nova situação; em ambos os casos há o risco de perder o cliente. As escolhas em uma circunstância imprevista dependem de como as pessoas estão, dos prós e dos contras, das disponibilidades para uma negociação. A flexibilidade do atendente pode ser uma ferramenta útil para ajustes entre as demandas do outro e de si.
Eventualmente, situações desse tipo incorrem em dilemas éticos. Aceitar ou não um suborno em prol da manutenção de um contrato? A flexibilidade não implica ultrapassar certos valores pessoais ou sociais, mas questionar se estes fazem sentido para si. Isso é um exercício diário, uma busca pela compreensão de como devemos agir para sermos coerentes com a maneira como entendemos o mundo; mesmo que estejamos, muitas vezes, diante de uma sociedade adoecida. Ainda que possa perder seu emprego por perder um cliente, o atendente deve aceitar o suborno? Quais são os elementos envolvidos nessa decisão? Por exemplo, os superiores do atendente o apoiam em situações limítrofes ou agem de modo a julgá-lo por qualquer medida tomada? Quais as condições de trabalho às quais esse atendente está submetido?
Ainda no campo das crenças, o questionamento de si e do que se acredita quando anterior a um momento de decisão pode auxiliar as pessoas a ter repertório para mediar conflitos, como quando um capoeira aprende a dar um salto “mortal” longe da roda. Quando estamos solitários, não precisamos provar nada a ninguém e a observação de nossos pensamentos nos permite questionar de onde vêm as regras que regem nossas vidas, se elas nos são realmente úteis, se acreditamos hoje no mesmo que acreditávamos ontem. Abrir espaço para a flexibilidade por meio da reflexão pode permitir uma transformação interna capaz de nos fazer girar o corpo e firmar os pés no chão diante das rasteiras da vida. Estar presente na situação.
“Quando transparentes e flexíveis, as regras do jogo dão o tom do improviso, de maneira não a restringir, mas a ampliar a possibilidade de ações libertadoras, a abrir alas para o acaso.”
Podemos olhar para esses argumentos com olhos desconfiados, prevendo um “jeitinho brasileiro” de resolver as situações de maneiras “tortas”. Questiono-me o quanto assumir que a vida é imprevisível é doloroso para uma sociedade doente e sedenta por heróis, por alguém que a salve dos grandes martírios que enfrentamos dia a dia. Dançar conforme a música, cantar sempre sem sair do tom, usar a roupa adequada. Como se a adequação fosse uma grande constante. Ora, ninguém vai ao escritório apenas com roupas de banho. Cada situação é única, perceber isso é um bom caminho para começar.
Quando transparentes e flexíveis, as regras do jogo dão o tom do improviso, de maneira não a restringir, mas a ampliar a possibilidade de ações libertadoras, a abrir alas para o acaso. Parâmetros nos permitem entender com o que estamos lidando e criar experiências a partir disso, desde que estejam em comum acordo entre os pares. A regra ainda existe, mas como uma borda porosa, não como uma linha dura, evitando estresse e constrangimento.
Para definir regras é preciso perceber o fato de que as experiências de interação com o mundo são diversas e que nem sempre é possível acessar o que o outro acessa. É impossível sabermos de tudo, e é a compreensão de nossa incompletude que nos auxilia a dar valor ao outro e a suas habilidades, capacidades e outras incompletudes, percebendo-nos em relação.
Assim, ganhamos base para o exercício do improviso e tranquilidade para lidar com os acasos. Como os capoeiras, passamos a perceber que eu e o outro estamos no jogo, acordando alguns parâmetros sem a necessidade de jogar da mesma forma. Um vendedor pode criar seu plano de trabalho em um mês ou em uma semana, desde que isso esteja acordado. Um responde à proposta do outro, de acordo com suas habilidades e com eventuais desníveis no chão. A observação da diversidade das experiências de cada um permite a definição de regras comuns, criando um campo de liberdade para existir do modo que a situação solicitar. Ainda, trazer à baila essas múltiplas experiências abre espaço para relações mais profundas e honestas e, mais internamente, para a criação. Cada um passa a contribuir para a situação que aparecer sem ser leviano ou entrar em culpabilizações exageradas ou em sofrimentos desnecessários. E isso é libertador.
Improvisar não é tornar as ações esquivas ou agir de qualquer maneira; pelo contrário, é estar sensível aos mundos externo e interno, às possibilidades de atuação e desejos de mover o entorno, exercitando a liberdade do pensamento e da ação, ainda que dentro de parâmetros aprendidos em sociedade. Diagnosticar as crenças próprias, questionando-as, pode ser uma tarefa árdua, mas é vital para a busca de um espaço onde muito já foi criado, dito ou informado. O modo como recombinamos as informações que conhecemos, a maneira como articulamos as ideias me parecem ser chaves para uma criação inovadora em qualquer área de atuação, especialmente se deixarmos fluir uma ação conectada com nossos pensamentos, mas com espaço para algo imprevisto acontecer.
1 FILHO, A. A.; RODRIGUES, D. S. A pedagogia histórico-crítica e a questão do método na práxis da capoeira. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n. 212, jan. 2019. Disponível em: <http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/46071>.
* Mainá Santana é artista da dança, arte-educadora, escritora, poeta, subeditora, psicóloga, banca de editais e professora; estudante de iluminação cênica, de conhecimentos ancestrais e eletricista amadora. MEI e CLT. Busca mergulhar em saberes diversos para improvisar melhor na vida.