Pandemia, quarentena e democracia são algumas das questões que mais nos preocupam nos últimos dias. Neste momento tão conturbado, repleto de incertezas e de muitas dúvidas, conversamos com a filósofa e professora Doutora Olgária de Matos(*). Com uma didática impecável, ela explica por que para Espinosa a democracia é o regime político mais natural para convivência entre os homens. Também quisemos saber se as instituições democráticas estão em risco e se haverá mudanças significativas na pós-pandemia.
INSPIRE-C: Por que para Espinosa a democracia é a forma mais natural de convivência entre os homens?
OLGÁRIA: Em Espinosa, a democracia se inscreve na compreensão de um estado de natureza, em que se vive segundo a potência das paixões, alegres e tristes, governados pela imaginação e não pela razão. Na imaginação passional, se projeta no exterior a causa de nossos sentimentos de tristeza ou alegria, entre outras paixões, quer dizer, nossa alegria ou tristeza dependem de causas consideradas, imaginariamente, como provocadas por objetos, os seres externos a nós, com o que não somos livres, mas dependentes da exterioridade. Como os homens não poderiam viver solitários, por não poderem suprir sozinhos a todas as suas necessidades de autoconservação, entram em estado civil.
A democracia, ao contrário das monarquias ou tiranias, tem sua potência na liberdade da “multitude”, dos muitos, da multidão que não é a massa passiva dominada pela superstição e pelo medo, em que uma assembleia colegiada detém um direito soberano de tudo que está em sua potência, sendo o regime mais governado pela razão e menos determinado pelas paixões. Assim se a democracia é o mais natural dos regimes políticos, é pelo modo de governo e de vida civil fundado na liberdade de pensar e de falar, que combina a segurança, a sobrevivência, a justiça e porque os indivíduos não são súditos, mas cidadãos.
A democracia é tanto a possibilidade do consenso quanto do dissenso. Se as tiranias são muito instáveis por ser preciso manter as massas em estado de submissão e medo, a democracia, sendo a vida com o máximo de segurança, sobrevivência e liberdade, é o viver sem medo. Mas ela também é o regime muito sujeito a rebeliões, quando as potências naturais de agir e de pensar da razão — que buscam causas imanentes — são subsumidas à superstição e ao medo. Daí a necessidade de uma “reforma da inteligência”, de ultrapassar as formas de pensar dominantes por paixões, preconceitos e hábitos mentais e acender à razão capaz de julgar e avaliar a liberdade.
INSPIRE-C: Segundo o filósofo italiano Luciano Floridi, as sociedades hiperconectadas vivem a transição da história para a hiper-história, ou seja, não há mais distinção entre o real e o virtual. Uma das consequências disso são as pessoas confiarem mais em perfis sociais do que nas próprias instituições democráticas. Você acredita que o Brasil já entrou na hiper-história?
OLGÁRIA: Não sei se hiper-história auxilia a compreender o presente, porque dueta Benjamin, trata-se da mesma história continuísta de crença no desenvolvimento técnico e tecnológico como coincidindo com progresso da humanidade enquanto tal, sem dar conta das regressões patentes da vida espiritual das sociedades. Se a intensificação do virtual faz vacilar o princípio de realidade, a proliferação de opiniões nas redes sociais, em que cada um é incitado a falar sobre tudo, ou seja, coisas das quais não temos a menor competência, é claro que isso inflaciona o pensar. Logo, o excesso de informações resulta em desinformação. Acrescente-se ainda que as redes ditas sociais não constituem nenhuma sociedade, são tanto a causa quanto o efeito da submissão de ideias feitas das quais está ausente o pensamento autônomo, isto é, capaz de duvidar, de pensar. O pensamento dogmático divide em dois as coisas: ódio ou idolatria aos governantes. Por isso, Walter Benjamin caracterizou a modernidade em um anjo de asas abertas que é empurrado de costas para o futuro, isto é, somos arrastados às cegas para ele.
INSPIRE-C: Neste momento de pandemia, fala-se muito em mudanças nas relações humanas após o fim do isolamento social. Dizem que as pessoas e as empresas não serão mais as mesmas. Você acredita que haverá mudanças? Se sim, quais serão essas mudanças?
OLGÁRIA: Na época do trans-humanismo, da promessa de imortalidade, das conquistas planetárias, o homo sapiens foi vencido por um vírus! Seria o momento de mudar essa insensatez das políticas de crescimento econômico e pensarmos num decrescimento.
A questão do esgotamento do planeta Terra, incêndios, terremotos, inundações, usinas nucleares letais, as manipulações em laboratórios que usam animais, a péssima qualidade dos alimentos que são consumidos e plantados com agrotóxicos. Mesmo assim, infelizmente, só se fala na tomada do crescimento econômico e da retomada ao trabalho embrutecedor para o consumo descartável. A pergunta é: De quantas catástrofes a humanidade precisa para conceber que não é possível continuar assim? Mudanças? Duvido que seja pra já.
INSPIRE-C: Recentemente os três maiores bancos privados do Brasil uniram-se para criar uma frente de combate ao desemprego, à fome e para evitar a falência do micro e do pequeno empresário. Será que agora é possível ter a esperança de que essa seja uma ação social genuína na direção do que Chomsky trata em seu livro O lucro ou as pessoas? Isto é, uma esperança de que os detentores do capital “enxergam” pessoas e não mais consumidores?
OLGÁRIA: As situações de emergência que sempre são acompanhadas de restrições — Péricles, em Atenas, sob ameaças externas à Grécia, periodicamente poderia se tornar ditador — não seria em si mesmas um problema, mas a questão é que já vivemos numa sociedade de controle, na qual, mesmo chefes de Estados fortes e democráticos consolidados em seguranças de dados, são vigiados. A questão se tornou ociosa. Até porque pode ser problemático esquivar-se dessas medidas de proteção da vida e também de controle, de que os regimes totalitários sabem tão bem se valer. Sempre com o que é inegável, não se pode ser contrário à medida de proteção da vida. A proteção sempre foi sinônimo de dominação. Que fazer!
INSPIRE-C: O que te inspira?
OLGÁRIA: Ah! O que me inspira? Ler, ficar devaneando pela história da arte e me divertindo com os memes que circulam, tudo para resistir à melancolia e à tristeza dos lutos impossíveis.
(*) Professora Doutora Olgária Chain Féres Matos
Graduada e Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Estudou mestrado, em Filosofia, pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne).
Atualmente é professora titular aposentada da Universidade de São Paulo e professora titular no Departamento de Filosofia da EFLCH-Unifesp. É Coordenadora da Cátedra Edward Saïd (Unifesp). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: tempo, filosofia, razão, democracia