São Paulo é uma imensidão. Ao prezar pela nossa rotina, muito da cidade nos escapa e locais, espetáculos, livros, conversas, curiosidades e filmes podem trazer experiências novas e diferentes com o mundo. Aqui, neste Recanto, compartilharei com vocês um pouco daquilo que encontro pela cidade. Dica: esta é uma matéria para você juntar com as edições #4 e #10!

Por Mainá Santana

O início da história do bairro hoje conhecido como Lapa remonta à chegada dos portugueses em terras guaranis, por volta de 1580. À época, a cidade de São Paulo já se enunciava, partindo do Mosteiro de São Bento e as terras próximas ao rio Jeribatiba (ou Jurubatuba, atual Pinheiros) foram entregues aos jesuítas, que ali se estabeleceram na segunda metade do século XVIII. Embora tivesse uma densidade demográfica baixa — os jesuítas construíram ali um aldeamento[1] —, foi por essas terras de várzea que as bandeiras paulistas aprenderam trajetos indígenas para adentrar o interior do estado, atravessando o rio Anhamby (ou Anhembi, atual Tietê).

Imagine que essa parte da cidade, por se situar muito próximo às margens dos grandes rios Tietê e Pinheiros, era um local com inundações naturais e periódicas. O Tietê, a depender do local, variava entre 24 e 50 metros de largura e se expandia de 1,5 a 2,5 km para além de suas margens; para comparação, o trajeto hoje entre a margem sul da Ponte do Piqueri e a Estação da Lapa (CPTM-7) tem pouco mais de 1 km. Em seu traçado original, o rio tinha 45 km de extensão entre a Penha e Osasco e, ao perder suas curvas e meandros a partir da década de 1940, passou aos atuais 26 km. Este foi o primeiro projeto de retificação do Tietê e fica a promessa de fazer uma matéria inteirinha sobre esse rio, que tem muita história para contar.

Primeiro projeto de retificação do rio Tietê, de José Antonio da Fonseca Rodrigues, em 1893.
Primeiro projeto de retificação do rio Tietê, de José Antonio da Fonseca Rodrigues, em 1893.

A região da Lapa não parecia muito aprazível a edificações, mas como era próxima a um estreitamento do leito do rio, abrigava parte de um antigo trajeto indígena (possivelmente um ramo do Caminho do Peabiru, já descrito em outra edição desta revista. Assim, em 1590, a administração da Vila de São Paulo dos Campos de Piratininga mandou construir uma fortaleza que defendesse seus territórios autodeclarados dos indígenas (possivelmente do tronco Tupi-Guarani). Essa fortaleza, de nome “Tranqueira do Emboaçava” e liderada por Afonso Sardinha, foi construída próximo à junção dos dois rios, onde encontramos a atual Ponte dos Remédios, sendo a origem Povoado do Emboaçava.

O povoado manteve sua característica de passagem, com a construção do Caminho de Jundiaí. Quando entramos na rodovia Anhanguera, se olharmos para a direita, poderemos observar um casarão, no mesmo local onde fora construído o antigo Casarão do Trancoso. No terreno, o plantio era diversificado e a região, com o intenso trânsito de tropas e barcos, tinha grande movimento. A ponte que ligava um lado a outro do rio se situava nesse terreno e pertencera ao coronel Anastácio de Freitas Trancoso, ficando conhecida até o século XX como Ponte do Anastácio. Chácaras passaram a se formar para aproveitar a grande oferta de água, com construções altas (sobrados) que previam as enchentes: a população se adaptava ao meio e usufruía os bens que a natureza fornecia.

Vagarosamente chegamos à segunda metade do século XIX, período cafeeiro, de grande expansão econômica para o estado. O crescimento da cidade, com o deslocamento de barões e seus escravos para a capital, demandava algumas mudanças estruturais. A intensificação da imigração europeia já tinha se iniciado no começo do século, a partir da vinda da Coroa Portuguesa para o Brasil. A primeira colônia oficial data de 1818, planejada pelos portugueses para estreitar laços com os povos germânicos, de modo a obter apoio contra o Império francês que ameaçava Portugal, o que levou ao estabelecimento, em 1820, dos primeiros suíços em Nova Friburgo (RJ). Com o movimento imigratório crescente e sistemático organizado pelo governo brasileiro também após a independência, a cidade de São Paulo recebia cada vez mais pessoas.

Bonde sobre a Ponte do Anastácio no rio Tietê, em 1921.
Bonde sobre a Ponte do Anastácio no rio Tietê, em 1921.

Devido à ótima qualidade do barro do rio Tietê, diversas olarias se estabeleceram em suas margens. Não apenas isso: o transporte fluvial era um fator importante para o comércio do material que passara a fazer parte das construções de toda a região. Com a expansão populacional, importantes obras de mobilidade e urbanização começaram a ser realizadas ao final do século XIX, como a ferrovia Santos-Jundiaí, construída principalmente para o transporte de café do interior até o porto de Santos, em 1867, por engenheiros ingleses da São Paulo Railway Company. Esse trem tinha algumas paradas, e uma delas era próxima à Ponte do Anastácio, no mesmo percurso onde passa hoje a linha 7 – Rubi da CPTM. Outra via de enorme importância para a região foi construída na mesma época, a Estrada de Ferro Sorocabana (hoje linha 8 – Diamante da CPTM), liderada inicialmente pelo comerciante de algodão austro-húngaro Luís Mateus Maylasky.

Por todos esses fatores, a Lapa cresceu vertiginosamente durante o século XX. Abrigava escritórios, comércios e precisava dar conta da nova população paulistana e da própria indústria que se formava. A Vidraria Santa Marina, o Frigorífico Armour, pioneiros, a Fábrica de Tambores Mauser e Cia. (hoje Sesc Pompeia) e o complexo das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (hoje o Complexo Cultural Casa das Caldeiras), já no século XX, foram de grande importância para o desenvolvimento da região.

Ali começavam a se estabelecer proprietários e trabalhadores de diversas partes da Europa e essa parte da história é contada por muitas famílias, descendentes dos imigrantes que ainda habitam o bairro. Um fator interessante foi a entrada de capital inglês ao longo da época, seja por meio dos trilhos ou da urbanização. O centro da Lapa e a Lapa de Baixo já estavam formados quando foi realizado o loteamento do Grão Burgo da Lapa, que lhes compreendia, e da Vila Sofia (que se confunde com a Vila Romana); os bairros projetados começaram a aparecer. Alto da Lapa, Boaçava, Vila Bela, Sumarezinho, entre outros, foram projetadas por urbanistas ingleses fundadores da Companhia City Lapa, inserindo em São Paulo o conceito “cidade jardim”. A ideia era compreender a topografia do bairro, o que priorizava os traçados da natureza e não o traçado quadrado, comum à época.

Bairro da Lapa e da Vila Anastácio na década de 1940.
Bairro da Lapa e da Vila Anastácio na década de 1940.

O pensamento por trás da urbanização da Lapa rendeu alguns frutos e, até hoje, caminhar por esses bairros é uma experiência realmente diferente na cidade de São Paulo. Saindo da Avenida Paulista e seguindo a oeste, deparamos com vias arborizadas, imensas regiões de construções baixas, frescor e sol. Encontramos centros culturais, como o Tendal da Lapa, que oferece cursos em diversos segmentos de arte, e a Casa Guilherme de Almeida, que abriga objetos diversos deixados pelo poeta. A casa onde morou era o local de saraus e encontros entre os artistas da Semana de 22 — hoje é tombada pelo município e abriga obras realizadas por artistas consagrados como Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Victor Brecheret. O Tendal da Lapa, na Rua Guaicurus, onde funcionava a JP Urner, um centro de armazenamento e distribuição de carnes, tem um histórico de iniciativas populares de cunho cultural. Outro local bacana é a Praça do Pôr do Sol que, como o nome já diz, tem um pôr do sol belíssimo, do alto de uma colina, de onde se consegue avistar até a Universidade de São Paulo, do outro lado do rio Pinheiros. Esses pontos turísticos se situam um pouco antes da Lapa como a conhecemos hoje, mas fazem parte do mesmo projeto urbanístico.

A Lapa é um local cheio de história e, ao mesmo tempo que algumas belezas foram preservadas a um alto custo (o metro quadrado está entre os mais caros de São Paulo), outros casarões históricos foram desaparecendo lentamente, por disputas imobiliárias. Os moradores do bairro, que em grande parte têm orgulho em ser “lapeanos” ou “lapianos”, se organizaram em associações para tentar impedir perdas de parte de sua história. Por exemplo, o antigo Hospital Sorocabano, único público da região, passou um longo período fechado, após sucessivas reduções no atendimento. Atualmente, enfrentando grande resistência da população, o hospital foi leiloado para pagar dívidas com a gestão e funcionários. Outro exemplo foi a demolição do antigo Clube dos Lituanos, em 2011, na Vila Anastácio, construído nos anos 1930.

Bairro da Lapa e da Vila Anastácio na década de 1940.
Bairro da Lapa e da Vila Anastácio na década de 1940.

O bairro, inicialmente de passagem, se funde com a história do País. Apesar dos aldeamentos indígenas realizados pelos jesuítas e do trabalho escravo realizado pelos africanos, são poucos os descendentes desses povos que ainda estão por lá: vale dar uma passadinha no Tendal da Lapa para encontrar exposições e ações culturais sobre a memória e a resistência dessas populações, ou prestar atenção aos terreiros que ali se encontram. Em suas edificações, no Mercado da Lapa (inaugurado no dia da morte de Getúlio Vargas!) e em alguns nomes de ruas você pode encontrar elementos tradicionais de italianos, poloneses, lituanos, espanhóis, ingleses, entre outras populações europeias que compuseram a história mais recente do local. Sua cultura de colônias persiste no tempo à urbanização desenfreada da cidade e aos eventuais impasses com os governos.

VOCÊ SABIA?

O Caminho de Jundiaí passava pela atual Rua Brigadeiro Gavião Peixoto e se ligava às Avenidas Francisco Matarazzo e São João até o centro da cidade. Uma pequena igreja fora construída em homenagem a Nossa Senhora da Lapa, na esquina daquela rua com a atual Av. Mercedes, a mando do devoto padre Angelo de Siqueira Ribeiro do Prado. Por volta de 1740, o padre a doou à Companhia de Jesus, ficando a pequena igreja conhecida como Fazendinha Jesuíta da Lapa.

O Casarão do Trancoso, depois de pertencer ao coronel Anastácio de Freitas Trancoso, foi vendido ao brigadeiro Tobias de Aguiar e sua esposa, dona Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, e suas terras foram passadas para sua descendência. Os herdeiros venderam parte do terreno para uma empresa de energia elétrica, a Light and Power, e outra para a Companhia Armour do Brasil e, assim, a casa original feita de taipas foi demolida. A atual construção foi erguida pela Armour para abrigar os funcionários de seu frigorífico. Hoje, a casa é tombada pelo Condephaat e o terreno foi vendido à empresa Tishman-Speyer. Muitas brigas judiciais depois, a Tishman-Speyer prometeu um centro cultural, o primeiro de Pirituba, que nunca foi construído. Bom, o pessoal que passa por ali diz que a casa é mal-assombrada, talvez seja esse o motivo do embargo…

Segundo Atas da Câmara do período, as olarias estiveram presentes na região de São Paulo desde a última década do século XVI. Inicialmente fabricavam telhas para a cobertura das casas e, em meados do século XVIII, passaram a produzir também tijolos para a execução de arcos, paredes de guarda, pisos e abóbodas de várias das pontes paulistanas. A alvenaria de tijolo para edificações integralmente só aparece a partir da década de 1850; antes, as construções eram feitas de taipa.

A malha ferroviária paulistana (e brasileira, por que não dizer?), antes largamente utilizada para o transporte de carga e de pessoas, foi perdendo a força a partir da introdução em massa dos automóveis e da malha rodoviária no País. As vias da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) compartilham seus trilhos com os trens de carga e até maio do ano passado tínhamos uma evidência desse modo de fazer: os até 20 centímetros de vão entre o trem e a plataforma eram necessários para o deslocamento dos vagões de carga, que são maiores. Depois dessa data, borrachões de proteção passaram a ser instalados, deixando os vãos com 10 centímetros a menos, com tecnologia para não comprometer os vagões. Na Lapa, a mudança será percebida apenas neste ano de 2020.

Sites de referência das imagens

https://gizmodo.uol.com.br/do-outro-lado-do-rio-segunda-parte/

http://www.saopauloinfoco.com.br/embriao-da-zona-oeste-a-historia-lapa/

http://www.saopauloinfoco.com.br/embriao-da-zona-oeste-a-historia-lapa/

http://museudaimigracao.org.br/hospedaria-de-historias-entre-bagagens-e-pertences/

[1] Lugar para a catequização de povos indígenas.

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