Por Juliano Caravela

Lembro que certa vez escolhi cursar e adentrar o universo do Direito. Na ingenuidade da época, por volta do início dos anos 90, algo me fazia crer que o Direito era a saída para entender e combater tantas injustiças sociais. O tombo e a decepção foram inevitáveis. Claro que o Direito como campo filosófico é sedutor e fascinante, mas na prática e em seu mote operacional sempre pendeu mais para o lado da opressão do que da revolução, da manutenção e proteção de privilégios aos que já os tem em detrimento dos que nunca os tiveram.

A lei sempre pode ser forjada, de dentro para fora e de fora para dentro. É interpretativa e, na vastidão da subjetividade humana, a ideia de que a “regra é clara” e “lei é lei” nunca passou de mera retórica, de pura metáfora. A regra “é clara” dependendo do ponto de vista de quem a aplica, de quem se beneficia e dos interesses dos que a façam valer.Veja, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos dos Homens de 1949, que dispõe que “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

Trata-se de um dispositivo humanitário que possui mais de 70 anos, repito, mais de 70 anos e ainda hoje continua a ser (em um eufemismo trágico) uma longínqua utopia. Enquanto isso, a miséria e a desigualdade continuam a ser, em vez de um problema a ser combatido, mais um mecanismo politicamente ardiloso, uma estratégia de manutenção de poder e perversidade social.

De certa forma, não deixamos de ser criadores e criaturas da cultura que construímos no entorno de nós mesmos, um sistema social secularmente sustentado por pilares como propriedade, trabalho, família, religião, educação, ciência, competição, tecnologia, avanço, capital, entre outros. Tais pilares aparentemente parecem dar à sociedade uma ideia de justiça comum, de evolução, de direitos para todos, mas que, na maioria das vezes, os afasta, os subtrai, pois são deveras demagógicos e estão longe de garantir que a humanidade viva e realize seu potencial intrínseco, tal como o simples espírito de fraternidade preconizado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem acima citada.

Manter o indivíduo dentro da “normalidade social”, da normose, da mente social, parece ser um dos papéis fundamentais da “justiça”, da ordem legal, mas que atua como uma espécie de vingança contra todos aqueles que não concordam, não se encaixam, sofrem com o sistema. A lei e a dita justiça nem sempre servem ao indivíduo, mas frequentemente estão a serviço do domínio e controle da psicologia das massas. Haja vista o recente sucesso desenfreado de filmes como Coringa, de Tod Phillips e Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, entre outros.

Essa gritante distorção entre justiça e realidade desencadeia uma série de aspectos relevantes que poderiam ser desenvolvidos incansavelmente, mas aqui os convido a um olhar raro e que está relacionado à justiça em seu aspecto intrínseco, singular, a justiça inerente ao campo da interioridade e suas potencialidades, mas que é diretamente afetada pela própria justiça (injustiça) exterior, mundana, sociocultural, político-legal e economicamente existente.

Digo isso porque a sociedade e o sistema não permitem que o indivíduo seja justo consigo mesmo — justo no sentido de integridade e dignidade —, e assim o reprime, colocando-o incessantemente dentro de uma espécie de avatar social. Um personagem atrás de outro, impostos, exigidos e controlados em tempo integral pela família, seus replicadores primários e a posteriori se estendendo a todo e qualquer ambiente de convivência (Estado, escola, trabalho, relacionamentos), seus replicadores secundários, mas não menos nocivos a esta justiça intrínseca que todos, de alguma forma, buscamos intimamente. Tanto é que um dos efeitos colaterais dessa desapropriação de si pode ser facilmente aferido com o crescimento exponencial das pandemias de cunho existencial, tais como síndrome do pânico, depressão, suicídio, que assolam principalmente o público mais jovem.

Etimologicamente, a palavra “persona” vem do latim (e do grego prosopon) e significa máscara. “Per” significa através e “sona”, som, ou seja, objeto pelo qual atravessa o som, ou a voz. Nas tragédias gregas, o som era ouvido através da máscara.

Somos impelidos a representar um papel atrás do outro, vestir uma máscara atrás da outra, a ter uma personalidade (ou várias) para chamar de “nossa” para assim “sobreviver” à guerra da existência, de modo que durante toda uma vida deixa-se de saber ou autoinvestigar quem realmente somos sem máscara alguma. Que som é esse por trás da máscara persona? Qual é e de quem é esta voz, este grito? O que somos sem vestir uma personalidade diária?

Esse tipo de justiça inata, ninguém fala, a faz valer ou a percebe. É incomum. Há pouca militância. É rara. Está abafada pelo ruído do mundo, por camadas sutis e complexas provenientes da socialização do contexto cultural construído por eras. E quando vez ou outra alguém resolve, em plena potência de agir, fazer valer a justiça a partir de uma compreensão interior, em busca de alguma autenticidade, originalidade, singularidade própria, na maioria das vezes é atropelado pela própria sociedade. Essa liberdade almejada intrinsecamente é antissocial e seu preço é alto, podendo inclusive lhe custar a própria vida. Budas, Cristos, Sócrates, Gandhis que o digam.

Em livro póstumo, Vontade de potência, Friedrich Nietzsche há mais de um século já previa: “Se te apetece esforçar, esforça-te; se te apetece repousar, repousa; se te apetece fugir, fuja; se te apetece resistir, resista; mas saiba bem o que te apetece, e não recue ante nenhum pretexto, porque o mundo se organizará para te dissuadir”.

Nessa esteira, a sociedade não passa de um conceito, e o individuo é a sua única realidade. O sistema cultural e a civilização que o circunda, pautado sobretudo nos valores por trás da máxima da competição, na lei do vencer, acaba por tornar o potencial humano serventil e cada vez mais a justiça social passa a ser um tema, um conceito, uma abstração, uma utopia impossível. Nunca factível. Um dos motivos por que isso se dá é que o indivíduo é a única realidade da sociedade — a sociedade não passa de uma complexidade de conceitos intangíveis; já o indivíduo, não, ele é real. Está no centro.

Ora, se princípios enganadores são repetidos e reiterados por séculos, falhamos em ver as fraudes básicas que existem por trás dos conceitos e princípios originais. Então, o caos é criado, pois o indivíduo é, de maneira intrínseca, incapaz de tornar-se o que essas regras sociais desnaturais dizem que ele deve ser. E injustamente, na maioria das vezes, a culpa em geral recai sobre o indivíduo, e não sobre a cultura e o sistema preestabelecido. De certa forma, o indivíduo está se degenerando e a cultura, o hábito continuam sendo louvados.

Somos compulsivamente impelidos a condicionamentos enviesados de padrões estéticos, comportamentais, de consumo, de escolhas, de “estilos” de vida imperativos, produção em massa. A todo tempo adestrados, submetidos e pautados por estratégias algorítmicas das mais diversas intenções, mercadológicas e políticas. Algoritmos que passaram a conhecer melhor o indivíduo do que ele mesmo para assim manipular suas escolhas.

Por isso, nunca foi tão urgente autoconhecer-se, fazer valer este senso de justiça interno, esta autoescuta e ação. Essa é a justiça que está na outra ponta, que ressalto aqui, e essencialmente importante quanto a qualquer outra ideia de justiça. Quando corpo e mente se alinham, se integram, uma consciência aparece e uma compreensão maior da vida pode se fazer emergir soberanamente.

Trata-se de uma justiça, uma voz interna que precisa ser “desencoberta” das entranhas do devir, do íntimo ser, e não a partir dos infinitos papéis sociais impostos. Historicamente, sociedade nenhuma permite isso, pois tal autodescoberta é perigosa para a multidão, para a tradição, para os falsos valores, pois quando alguém passa a conhecer a si mesmo, deixa de fazer parte das psicologia das massas e não poderá ser mais pautado, manipulado e explorado como cardume. Viverá de sua própria interioridade, dessa justiça, desse norteamento interior que aqui os convido “desencobrir”, investigar.

As pessoas e suas personas, em sua maioria, estão constantemente em lugares trocados, exercendo aquilo que não são, e sendo aquilo que não exercem. Ninguém parece estar no lugar certo. Parafraseando Caetano, “alguma coisa (sempre parece estar) fora da ordem”. E a sociedade continua a ser, por si só, uma psicologia coletiva enferma, em profusa confusão, em que cada sujeito é dirigido, comandado por outros e não por sua própria intuição. Não vivem a partir de sua própria interioridade, de um senso autêntico de justiça, de integridade, de singularidade, e essa opressão é invisível, tão nociva quanto qualquer outra noção de injustiça, pois nos atinge na calada da alma. O convite aqui é o do cair das máscaras.

Até a próxima!

Sobre o autor: Juliano Caravela, Poeta, compositor e professor.
Advogado pela PUC/SP.
Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP.
Sua obra é uma degustação de poemas, melodias e insights da experiência cotidiana autobiográfica, com influências poéticas que vão do abstrato ao concreto haicaísta e musicais que vão da bossa nova ao pop brasileiro.

Empreendedor nas áreas de Arte/Educação/Cultura, ministra palestras, workshops e vivências para empresas, escolas e grupos. Curador de eventos de arte e poética da Casa das Rosas e gestor do Espaço Cultural AveVenus, em São Paulo.

Obras:
Livro: Samadhi – Vértebras em que versos correm. Ed. Confraria do Vento, 2016.
Disco: Transeunte (2018) – Álbum poético musical. (spotify/deezer/itunes)
Clipes e vídeos: YOUTUBE/JULIANO CARAVELA.
Contato: [email protected]
@espacoavevenus / @juliano_caravela (instagram)

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