Por Gustavo de Oliveira

Nos mitos e tragédias gregas geralmente somos apresentados ao arquétipo do herói. Alguém que realiza tarefas impossíveis e notáveis, mas que na maior parte dos casos encontra um fim trágico. A superação de seus próprios limites em direção a um destino que muitas vezes não é recompensador sempre deixa uma pergunta no ar: o que motiva esse herói a continuar?

Um jogo recente que faz essa reflexão muito bem é Hades. Nele jogamos com um personagem chamado Zagreus, filho do deus do submundo grego. O protagonista tem um desejo muito simples, que é fugir dos domínios de seu pai, Hades, para encontrar um novo estilo de vida. Apesar de nenhum outro mortal ou imortal ter conseguido realizar tal feito, e a contragosto de seu pai, o personagem decide se lançar nessa empreitada.

Já não bastasse essa missão praticamente impossível, Hades ainda tem um tempero especial em sua mistura. O jogo faz parte de um gênero específico de games chamado de roguelikes. Essa categoria tem como característica principal a morte permanente de seus personagens, ou seja, caso você perca, é necessário voltar ao início da partida e repetir todo o processo. Não existem checkpoints, salvamentos ou facilitações. Pode parecer um pouco intimidador, mas acredite, ainda assim consegue ser um processo divertido.

O ciclo de tentativa e erro que é construído por Zagreus em suas incursões acaba se relacionando muito com nosso cotidiano. Afinal de contas, todos os dias acordamos e vivemos com o desejo e a intenção de chegar a algum objetivo. Muitas vezes sem chance de errar ou precisando começar tudo de novo. No jogo somos apresentados a outros seres e personagens que também estão presos nessa série de acontecimentos repetitivos.

Aquiles, mestre de Zagreus, deseja reescrever o destino de seu pupilo para que ele não tenha o mesmo futuro trágico que o seu. Nyx, deusa da noite, deseja manter a ordem e as boas relações no mundo dos mortos, mesmo sem sucesso. É fácil se identificar com esse panteão, que mesmo com poderes sobre-humanos e a imortalidade, enfrentam dilemas e fragilidades que nós, mortais, encontramos todos os dias.

O protagonista é alguém que, contra todas as expectativas, encontrou a força necessária para desafiar a ordem vigente. Suas mortes (quando perdemos) deixam de ser uma punição para se tornar uma nova oportunidade de tentativa e aprendizado. Mesmo quando somos forçados a iniciar novamente a aventura, o jogo nos permite continuar com pontos e recursos das tentativas anteriores, acumulando assim experiências e os ganhos de cada etapa, nos ajudando a enfrentar os desafios mais fortalecidos.

Uma das inspirações para a narrativa de Hades é o mito de Sísifo, personagem da mitologia grega que também aparece no jogo. Sísifo era conhecido como o mais esperto dos mortais. Certo dia, após denunciar Zeus pelo sequestro de uma ninfa, ele foi condenado à morte. Porém, Sísifo ludibriou Tânatos, deus dos mortos, e Hades, conseguindo viver uma vida longa. Após muitos anos, ele naturalmente chega ao fim de sua vida e no submundo é condenado a um terrível castigo. Todos os dias é obrigado a levar uma pedra até o topo de uma montanha. Mas, chegando lá, a pedra rola monte abaixo e ele deve repetir o processo para sempre.

Preso a esse trabalho exaustivo e sem nenhum propósito pela eternidade, Sísifo precisa realizá-lo para continuar sobrevivendo, mesmo sem encontrar um porquê. Hades tenta ser uma perspectiva um pouco mais otimista desse mito, inclusive nos dando a oportunidade de libertar Sísifo de seu ciclo. Não apenas ele, mas outros personagens aprisionados em trágicos destinos, como Eurídice e Orfeu.

Zagreus é a representação de alguém que encontrou seu sentido e objetivo, por mais imóvel que o obstáculo à frente possa parecer. Nas suas idas e vindas no submundo, ele aprende e conhece mais sobre si mesmo e o mundo que o cerca, percebendo que é possível alterar as convenções que foram apresentadas desde o seu nascimento. E por mais impensável que seja tentar alterar algo na rotina tão voraz a que ele e nós mesmos somos expostos todos os dias, a beleza existe neste desejo e ação por mudança.

Nessa história e em nossas vidas, o caminho às vezes fala mais alto que o destino final. A estrada que nos leva até nossos objetivos pode ser recheada de bons momentos e aprendizados. Afinal, muitas vezes é nessa jornada que encontramos o que motiva os heróis e nos faz tentar de novo no dia seguinte.

Hades (2020)
Desenvolvedor: Supergiant Games
Plataformas: PS4/PS5, Xbox One, Xbox Series S/X, Nintendo Switch e PC.


Gustavo de Oliveira
Graduando em Jornalismo pelo Centro Universitário Carioca e técnico em administração. Redator desde 2018 com experiência em música e jogos.

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