Texto | GUSTAVO DE OLIVEIRA
O dia 22 de março de 2025 marcou os 20 anos do lançamento do primeiro jogo da série God of War. Concebido em um contexto único da sociedade norte-americana e da indústria dos videogames, o jogo foi responsável por apresentar um protagonista que se tornou um dos mais icônicos do meio, Kratos. O personagem se estabeleceu como um retrato quase inconsciente de uma masculinidade violenta, vingativa e profundamente enraizada em traumas não resolvidos. Porém, nesses 20 anos de existência, ele e a franquia se transformaram, oferecendo um campo fértil para reflexões sobre o tempo, a indústria e a maneira como se constrói a figura do homem na mídia dos videogames.
Voltando um pouco no passado e revisitando o primeiro jogo da série, compreendemos um pouco melhor a sua concepção. God of War nasceu em um contexto de relativa liberdade criativa dentro das grandes desenvolvedoras. Seu diretor original, David Jaffe, ganhou autonomia após auxiliar um projeto da Sony que estava em dificuldades. Esse tipo de estrutura, em que criadores tinham mais liberdade para desenvolver propriedades intelectuais originais, já não é mais tão comum, o que torna esse processo um fruto específico de sua época.
No entanto, além do contexto trabalhista, o jogo reflete claramente o estado criativo da indústria cultural no início dos anos 2000. O projeto se consolidou como um grande mosaico de influências. Elementos de jogos como Onimusha, Devil May Cry, Ico, Prince of Persia e Zelda são evidentes em sua estrutura. Além da própria concepção de Kratos, um guerreiro brutal e trágico inspirado pela mitologia grega, que revela não apenas um desejo de capturar a grandiosidade dos épicos clássicos, mas também uma aderência ao espírito do pós-11 de Setembro, em que a cultura americana abraçou ainda mais fortemente arquétipos de força, revanche e agressividade.
Kratos, nesse sentido, não é só o protagonista de uma narrativa violenta. Ele é a personificação de um homem que, após ser enganado e explorado, rejeita vulnerabilidades e responde a todas as fraturas emocionais com fúria. De alguma forma sua narrativa, marcada pela sensação de culpa e perda, tenta criar um caminho que demonstra os males de seu comportamento, mas ao mesmo tempo ela é embrulhada em uma estética que se aproveita do poder e do massacre. O jogador, ao assumir esse papel, não apenas assiste à destruição: ele a executa e é recompensado por ela com feedbacks visuais e sensoriais que celebram o impacto da violência.
Isso não quer dizer que God of War falhe completamente em suas ambições narrativas. Pelo contrário: o jogo tenta, de forma rudimentar, construir uma crítica à violência e às figuras de poder que a utilizam como ferramenta de dominação. Mas há uma dissonância entre discurso e prática. Enquanto a história aponta que todos os personagens, inclusive Kratos, são moldados e corrompidos pela violência, o gameplay trata essa mesma violência como algo satisfatório. Esse descompasso entre forma e conteúdo acaba criando um debate bem interessante nas possibilidades discursivas que um jogo pode possuir e transmitir. Não é à toa, portanto, que muitos jogadores ainda hoje enxergam Kratos como uma figura aspiracional, ignorando completamente as nuances (mesmo que limitadas) que o jogo tenta oferecer. Mais do que um problema de leitura do público, essa leitura revela uma fragilidade da própria obra em sustentar sua crítica interna à violência. Ao mesmo tempo que denuncia a destruição causada por escolhas impensadas, o jogo transforma essas escolhas em espetáculo.
O que nos leva até a principal e mais significativa transformação da franquia: a maneira como ela revisita seu próprio passado. Apesar de todas as mudanças de jogabilidade, temática e escopo de narrativa, o que ficou mais marcado com o reboot que a franquia sofreu em 2018 foi o próprio Kratos. Carregando cicatrizes físicas e emocionais, sua relação com o filho, Atreus, o obriga a enfrentar tudo aquilo que ele reprimiu por anos: a necessidade de cuidar, de ensinar, de proteger sem destruir. Nesse novo contexto, a violência é vista com pesar, com consequência, com responsabilidade. Kratos continua sendo um guerreiro, mas agora é também um homem em processo de reconstrução.
Essa guinada não nega o passado da franquia, pelo contrário, a reconhece e a usa como ponto de partida para um novo caminho, sem necessariamente construir um juízo de valor sobre tudo que já foi construído artisticamente pela série. Até porque não é responsabilidade de uma obra de arte funcionar como um manual de bom comportamento. Essa mudança se dá pela simples mudança e transformação dos contextos de produção dos jogos, da vida dos artistas envolvidos e das inspirações e vontades mutáveis que o trabalho artístico proporciona. Ao fim de duas décadas, a trajetória de God of War nos convida a refletir sobre quanto os videogames e nós somos mutáveis. Não apenas pelo que fomos, mas principalmente por aquilo que decidimos nos tornar.
Gustavo de Oliveira
Graduando em Jornalismo pelo Centro Universitário Carioca e técnico em administração. Redator desde 2018 com experiência em música e jogos.
Diagramação | RONALDO CAMPOS
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