Por Gustavo Izidio Silva
“Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.”
-Motivo, de Cecília Meireles.
Meu motivo: escrevo porque o instante existe. Ou melhor, escrevo sobre Cecília Meireles porque o instante exige.
A autora de quem vos falo é nascida no Rio de Janeiro em 1901, uma educadora revolucionária, fundadora de biblioteca e célebre poeta. Seus textos dão forma e luz às maiores inquietações da vida humana e desestruturam camadas tão profundas e desconhecidas que, costumeiramente, ao ler-se um de seus poemas, sobrevém um desequilíbrio, um mal-estar, uma pontada forte no coração, mas um sorriso se esboça e a vontade de debruçar-se sobre aquelas palavras com mais ardor nasce e se desenvolve.
Para tanto, apresento um riquíssimo exemplo magistral de seus poemas: “Discurso”, incluído no livro Viagem, de 1938, que é uma trajetória poética do percurso humano rumo ao desconhecido de si próprio diante de um mundo igualmente obscurecido.
Como os grandes prosadores e narradores, o eu lírico se manifesta e se autointitula: é um poeta. E por isso: “[…] aqui estou, cantando”. Ele comunica, com assiduidade e beleza, uma constatação que por vezes retêm-nos a face e o espírito: para onde vou e por onde andei? Quem já fui, sou e o que serei, no mais do tempo?. O que seus versos anseiam por expressar chega-nos pungentemente: “a fugacidade da vida me levou por caminhos inimagináveis; sou, portanto, um estrangeiro na terra do eu; já não me reconheço, não sei para onde vou”.
“Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as
[serpentes andaram.”
Uma vez arquitetados, sonhos, planos e desejos tornam-se exuberantes. Em um momento, a vida parece ganhar perspectiva, solidez e esperança. Tudo parece extremamente tranquilo e fácil: segue-se por essas veredas, desemboca-se por outros caminhos, ladeiam-se aquelas trilhas e logo ali estará. Sonho realizado, meta cumprida, carreira e estabilidade consistentes.
Porém, como bons seres humanos, temos consciência de que a vida, às vezes, parece seguir seu próprio percurso e leva-nos, em consequência, por rumos jamais imaginados. Alcançam-se relevos próximos, nunca o cume da montanha.
Mas longe de desesperança. Ao contrário, parece que é da incerteza, da característica intrínseca de que tudo nos escapa, da efemeridade, que a esperança se alimenta e se refaz. Chegados em tortuosidades, rochas e pedregulhos, o horizonte parece-nos mais próximo e possível. Ainda que perscrutando caminhos outros, que não aqueles sonhados, o corpo e a mente parecem ser capazes de desentranhar a beleza, a alegria e o bem-estar das mais difíceis situações. Os caminhos desconhecidos parecem agora cedidos de uma paz luminosa, percebidos como os únicos possíveis. Ao longe, escuta-se o rumor das águas, ondas tranquilas que morrem na areia da praia, mas retornam à imensidão do oceano.
É como se tentássemos, com a concha da mão, guardar o oceano entre nossos dedos, mas, à medida que voltassem vazias, uma ânsia e necessidade crescessem inabaláveis.
O eu lírico reafirma: “Pois aqui estou, cantando”. Sem assombro nenhum, questionar os caminhos percorridos parece ser a única forma de efetivamente tomar consciência mínima de nossa própria identidade. O que digo é: aceitemos que rumos novos serão percorridos; aceitemos também que os sonhos, desejos e perspectivas não se dissolvem nas águas navegadas, mas misturam-se com tranquilidade, como se a água salgada do oceano pouca força tivesse sem encontrar-se, vez ou outra, com as águas doces dos riachos e rios.
Acredito que tomados dessas inconstâncias e perspectivas, a vida parece menos terrível. Mas novamente falo: acalme-se um instante; retorne os olhos ao passado; contemple, sem medo, sua vida de outrora; busque reconhecer nela traços próprios e enxergue o futuro como um manancial de possibilidades
Quero concluir deixando aqui os últimos versos do poema, que parecem ser mais atuais como nunca se imaginou. Ou talvez sejam somente aquele elemento de inquietação humana de que vos falei no início. Aliás, para novos encontros e desencontros é que escrevo sobre Cecília. É um convite. Eis os versos:
“Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?
Ah! se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar
[ de mim?”
Gustavo Izidio Silva é um grande apreciador da literatura brasileira. Atualmente estuda Letras – Português e Latim na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Referência
MEIRELLES, Cecília. Viagem. Apresentação Alfredo Bosi. 2 ed. São Paulo: Global, 2012.