Mainá Santana
Resumo: Independente do gosto do freguês, a arte traz elementos para a reflexão e experiências com mundos conhecidos e desconhecidos, muito similar à infância. Neste momento da vida, a criança descobre seu entorno por meio do corpo – sensações e percepções –, o mundo é material de inspiração para fazer algo novo, trazendo outros sentidos para as relações preestabelecidas do planeta adulto. Se toda a experiência tem o potencial de formar e transformar, variá-las é vital para ser sensível ao outro e a si mesmo.
Palavras-chave: inspiração, arte, infância, corpo, experiência
Inspirar. Trazer o ar para dentro, inalar. Preencher espaços internos com ar. Fornecer oxigênio para o trabalho das células. Inspirar é prover matéria-prima para a manutenção da vida.
Esses dias li nas mídias sociais que “brasileiro não precisa de arte, precisa de concreto e infraestrutura”, que “não precisa de artistas, mas de engenheiros e técnicos”. Ao ler essas frases imaginei um desenho animado em escala de cinza, homens sérios de terno desfilando de cabeça baixa, ora com chuva, ora sob o sol. Não há música, dança ou cinema. Não há teatro ou circo, nem pinturas, esculturas, performances ou exposições. Apertando um pouco o pensamento, criei um cenário sem ourives, alfaiates, sem pessoas que pensassem cor e forma, perspectiva, equilíbrio ou desequilíbrio e, sem esses elementos, também não existiam engenheiros ou técnicos, tendo em vista que esses também usam a estética como parte de sua prática. Os homens sérios estavam nus, mas sem corpo, porque o corpo denuncia a existência da pessoa; caminhavam sem pés para tocar o chão ou cabeça para abaixar.
Há uma terrível confusão instaurada. Por não acreditarem na potência da arte como linguagem e prática de trabalho, pessoas discursam sobre o seu fim. A confusão, a mim curiosa e incômoda, vem de pensamentos e posições filosóficas que separam, categorizam e hierarquizam o mundo para torná-lo mais digerível. A arte está lá, longe, e pertence aos artistas, pessoas que produzem algo imaterial, muitas vezes incompreensível e/ou contestador, instável; o técnico e o engenheiro estão próximos do que é pragmático, direto e concreto, do que eu posso ver.
Eu não vejo o ar, mas sei que ele está lá. O vento é o ar em movimento, disse a professora da escola. O ar, 78% nitrogênio, 21% oxigênio, menos por cento de água e outros gases, tanta vida separada em invisíveis parcelas de respiração. Confesso que não tenho conhecimento profundo dos gases, dos números, do invisível e, talvez, de nada. Sou uma generalista em assuntos da natureza humana, expresso o que sinto pelo meu corpo, narinas, pele e olhos, e isso possivelmente me torna uma falaciosa da vida alheia. Do que me inspira, gente estuda e descobre o que está lá, por menos que eu veja ou compreenda. Do que eu estudo, gente se inspira e se sente tocada, por menos que vejam ou compreendam, o que quer que eu ou “eles” estudem. Ser capaz de inspirar, de criar e de respirar é inerente ao ser humano.
Criança, queria ser médica para descobrir a “cura do câncer”. Depois, astronauta para visitar planetas novos. Renomear passarinhos, ser muito famosa pelas minhas teses sobre o mundo. Demoro-me a entender sobre as fontes da minha inspiração infantil; coabitavam a curiosidade e um desejo de grandeza contrastante com a condição social que me cabia e, por não ser esta condição a miséria, que esteriliza as terras da imaginação, ainda era possível brincar. As crianças descobrem o mundo pelos sentidos, têm um lindo potencial de transformação de realidades, ampliado por suas experiências e pelo ambiente no qual se desenvolvem. Um tecido vira mar, uma caixa vira um barco, a terra é uma boa tinta; brinquedos desestruturados (sem formas definidas) permitem que a imaginação flua de acordo com as interações.
No meu ambiente infantil, como no de muitas crianças, os valores eram cravejados de funcionalidades e a inspiração trazia gostos não da experiência em si — ser médica —, mas daquilo que viria depois de ser — descobrir a cura do câncer. Um pouco como ir para a pré-escola para chegar ao ensino fundamental ou ir para o ensino fundamental para chegar ao ensino médio, ou à faculdade, ou ao mercado de trabalho, ou à aposentadoria. Talvez a idade adulta nos devesse trazer a realidade de que não se é para nada. Ser médica para descobrir a cura, ser astronauta para descobrir outros planetas. Se nos preocupássemos também em ser, poderíamos entender que o mundo não está apenas para, está entre.
A arte e a brincadeira são motores de inspiração; o adulto que se deixa levar apenas pelo pragmatismo do “para”, de suas tarefas diárias, diminui sua capacidade de perceber o mundo, deixando de ressignificar aquilo que apreende, ou seja, deixa de criar. A experiência de sentir cheiros, gostos, toques diferentes nos retira do maçante do dia a dia de trânsito, trabalho, rotina, academia. O corpo percebe cor e forma, perspectiva, equilíbrio ou desequilíbrio, seja em alimentos, danças ou prédios. Assim como a criança pequena aprende de maneira sensorial, as pessoas, fazendo ou fruindo arte, colocam o corpo entre experimentações e criações. Isso tem a potência de construir um médico, um engenheiro, um artista, mas sem essa necessidade ou finalidade: é consequência. Se a arte e a brincadeira são os motores, o corpo, para além do erótico, é onde a inspiração pode se transformar em energia e isso é o mote de interesse do artista.
O adulto pragmático deixa a inspiração encurtar na busca exclusiva das porcentagens de nitrogênio e oxigênio presentes no ar. O corpo desfalece, sem material suficiente para a produção de energia, adormecendo-se em um vazio de percepções. Resiste: procura um horizonte ao alcance dos olhos, uma textura que distraia as mãos e, na cadeira da resolução de tarefas, os pés despretensiosamente escapam ao chão. Ao se perceber voar longe da rotina rumo ao imaterial, o adulto prende-se à sua própria mesa, se enterra na sala onde reside. O importante é ter âncora para evitar procrastinação. Nada deixa fluir o que há em seu próprio peito, mal sabe por que o peito sobe e desce, talvez seja como o elevador, para cima e para baixo, feito para isso. O mundo precisa apenas de engenheiros e técnicos.
Para crescer, a criança deixa o mar feito de tecido, o violão silencioso no quarto, telas inacabadas, textos fragmentados, torna o mundo uma janela fechada. Pouco ar no pulmão, pouco oxigênio nas células, o corpo se esvai em escala de cinza.