Por Renata De Luca
O filme Quanto vale?, disponível na Netflix (Worth, 2021) aborda em sua trama a criação do Fundo de Compensação às vítimas dos ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos e seu difícil trabalho de calcular o valor das indenizações a serem pagas pelo governo aos familiares. Baseado em uma história real, este fundo existe naquele país desde então, sendo responsável pelas indenizações aos cidadãos norte-americanos vítimas de outras tragédias nacionais.
O foco está no protagonista do filme, o advogado Kenneth Feinberg (Michel Keaton), cujo escritório é contratado para assumir o trabalho e sua “fórmula” de cálculo dos valores dessas indenizações, com base na remuneração das pessoas que trabalhavam nos locais atacados. As perguntas que retornam durante o enredo são: “Quanto vale a vida? A vida de um C-level deve ser mais indenizada que a de um trabalhador braçal ou um socorrista? Como precificar a perda?” Nas primeiras cenas, em uma aula dada por Ken para universitários, ele deixa claro que existe uma fórmula de cálculo jurídica para isso, baseada na remuneração e expectativa de vida da pessoa falecida, justamente para evitar a subjetividade e para padronizar a condução do assunto.
Mas, para que as coisas funcionem, Ken terá de sofrer uma transformação e ter menos pressa, revendo sua fórmula, aproximando-se dos familiares das vítimas, defendendo causas como a da união estável de casais homoafetivos e cuidando de exceções, como a da esposa que descobriu outra família do marido falecido. Ou seja, novelas familiares gritarão nos ouvidos de Ken e, de início, ele tentará ignorá-las para resolver o assunto de maneira prática, mas sem êxito.
Uma reunião trágica anuncia o drama que ele terá de enfrentar: seu escritório reúne os familiares pouco tempo após a tragédia para falar da criação do Fundo e ensinar como preencher os formulários necessários para solicitação da indenização, em um momento no qual as pessoas querem falar de suas dores, pois o sofrimento está à flor da pele; elas estão assustadas com o ocorrido, chorando por não poderem enterrar seus mortos. É evidente que Ken não será ouvido.
Muitos outros pontos interessantes são abordados na trama, como a desigualdade social, que fará imigrantes serem gratos pela média de valor oferecida pelo Fundo, ou a ganância e o “salve-se quem puder” de alguns, mas o que captura é a transformação do advogado para que ele consiga avançar no seu propósito. E isso passará pela abertura de um espaço para ouvir as histórias dos familiares das vítimas.
Isso me lembrou muito um tempo em que trabalhei no serviço de saúde mental de um hospital de oncologia pediátrica e uma das minhas tarefas era acompanhar os médicos na transmissão dos diagnósticos. A cena mais comum era a de pais estarrecidos e jovens médicos apressados em dar a notícia com informações completas. Os primeiros paravam de ouvir diante do impacto das palavras chocantes como “maligno, tumor, quimioterapia” e outras que você jamais quer relacionar ao nome de quem você quer bem; os segundos falavam com muito conteúdo, como para se livrarem rapidamente de um grande fardo. A conclusão era de uma conversa sem frutos, que teria de ser retomada muitas vezes nos dias seguintes, e o trabalho da saúde mental era intermediar o diálogo para que ambos respeitassem o tempo necessário para absorver a notícia: o tempo de ver, compreender e concluir, ensinado por Jacques Lacan, ao apresentar em 1945 o conceito de tempo lógico. Em seu primeiro texto após a Segunda Guerra Mundial, Lacan discutirá que, diante do traumático, uma cadeia significante absolutamente individual é acionada e, para ascender à sua verdade, o sujeito terá de percorrer esses três momentos, cujo tempo do meio — o de compreender — é o mais longo.
Era comum, nessas situações de transmissão do diagnóstico, os pais interromperem seus processos de compreensão por culpas ou associações que vinham de lugares inimagináveis (a tal cadeia significante) e só retomarem após falar e externar seus sofrimentos por isso. Coisas como “será que estou pagando por ter feito um aborto na juventude?” ou “eu não queria esta gravidez” ou “isto deve estar acontecendo para nos ensinar…” ou ainda “deve ser porque minha família…” eram pensamentos que atravessavam a lógica racional e interrompiam a compreensão do saber médico acerca da doença.
Ou seja, para tratar o sofrimento humano diante de qualquer tragédia, o profissional precisa estar disposto a ouvir acerca das vicissitudes subjetivas, não tendo como saltar esse tempo. Se ele não o fizer (e não é fácil fazê-lo, pois são arrastados para um terreno mais inseguro), não completará sua missão com êxito, pois a consequência de pular essa etapa será a criação de uma resistência. Resistência a um acordo indenizatório, a um tratamento médico, a uma orientação profissional… não importa, e pior ainda se for velada, daquela cuja pessoa ouve tudo, consente com a cabeça diante do profissional, mas se comporta diferente depois.
Escutar atentamente o sofrimento humano faz parte do trabalho de quem lida com ele; não tem como fugir. Pelo contrário, o profissional deverá ganhar a confiança da outra pessoa e abrir um espaço para que a dor se manifeste e, pacientemente, acolhê-la, a fim de seguirem em frente. Coisa difícil nos dias de hoje, não?
Renata De Luca
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Diretora de RH da Security Segurança e Serviços, psicóloga (PUC/SP), psicanalista (IP/USP), mestre em Educação (FE/USP) e MBA em Gestão de Pessoas (FGV).