Maria Clara Dias
Universidade Federal do Rio de Janeiro-CNPq

Resumo: Nesta exposição pretendo apresentar uma concepção funcional de pessoa que permita uma revisão do modo como interpretamos os limites do nosso corpo e do nosso Self. Como isso, pretendo transpor o desafio ético de considerar como um igual seres que não se enquadram no modelo sociocultural estabelecido pelo sistema normativo vigente. Minha tese é a de que somos todos sistemas funcionais dinâmicos, flexíveis, que se transformam e se moldam, numa tentativa de melhor se harmonizar com seu entorno e alcançar uma realização plena. De acordo com essa perspectiva, defenderei então um compromisso moral com o florescimento dos funcionamentos básicos dos seres humanos, entendidos como sistemas funcionais complexos e diversos.

Palavras-chave: Pessoa. Sistema funcional. Comprometimento moral.

 

O que significa falar de pessoas com deficiência? Quais seriam os possíveis desafios éticos dessa questão? Uma pessoa é geralmente interpretada como um igual, alguém, portanto, a quem devemos igual consideração. Uma pessoa com deficiência é também uma igual? Aqui temos uma pergunta ambígua. Se houver sentido falar de deficiência, então em algum aspecto relevante essa pessoa não é uma igual. Digamos que na visão corrente ela “de fato” não seja uma igual, embora nessa mesma visão possa e deva ser considerada por direito, ou, sob o ponto de vista moral, uma igual. O aspecto capcioso do problema estará na identificação das características necessárias para que possamos considerar alguém, uma pessoa, e a distinção entre essas características e características, por assim dizer, secundárias, que podem, portanto, estar ausentes, sem comprometer o reconhecimento de um indivíduo como pessoa.

Se quisermos seguir nesta linha de raciocínio, teremos de começar pela pergunta mais óbvia. Em que consiste ser uma pessoa? Ou, em outras palavras, quais características julgamos essenciais para identificar uma pessoa? Quando, então, tivermos chegado a algum acordo sobre esse ponto, ou simplesmente tivermos sido vencidos pelo cansaço, teremos de enfrentar a questão seguinte: o que é uma deficiência? Nesse ponto, se ainda não tivermos desistido, talvez possamos esclarecer em que contexto falamos de pessoas com deficiência.

Há pelo menos 2.500 anos a tradição filosófica tem se dedicado a caracterizar o que somos nós: eu, vocês e os indivíduos que de alguma forma julgamos semelhantes a nós. A tradição filosófica acredita que eu, vocês e eles possuímos algo que nos caracteriza e, segundo a tradição, nos distingue e identifica enquanto pessoas. Acredita, por assim dizer, em uma natureza humana, mais ou menos fixa e visivelmente delimitada. Nesta exposição optarei por rechaçar essa forma de colocação da questão e com ela o cardápio filosófico de respostas. Em contrapartida, pretendo me servir de uma caracterização funcional do que somos que, segundo pretendo defender, não nos distingue, mas aponta uma forma de individuação mais apropriada do que somos e nos permite romper com um paradigma de normalidade, segundo o qual alguns indivíduos são então caracterizados como faltantes ou deficientes. Minha proposta é que adotemos como foco de nossa consideração moral indivíduos concebidos como sistemas funcionais diversos e, como imperativo moral, o dever de contribuir para o florescimento dos diversos sistemas funcionais, o que quer que, em cada caso, isso possa significar. Neste modelo interpretativo, a deficiência deixa de ser uma característica intrínseca ao sistema e passa a ser tomada como expressão de uma inadequação entre o indivíduo e o seu entorno.

 

Nós: sistemas funcionais

A caracterização de indivíduos como sistemas funcionais é própria a uma forma de individuação que pretende dissolver uma série de impasses gerados a partir de uma concepção dualista do que somos. O dualismo em sua versão tradicional, o dualismo ontológico, concebe os seres humanos como um composto de dois tipos de substâncias: uma substância pensante, uma mente, e uma substância física, um corpo[1]. Entendidos dessa maneira, seria difícil justificar a consciência subjetiva que temos de nossa própria unidade e as razões pelas quais justificamos nossa forma de atuar no mundo. Acredito, por exemplo, que as diversas partes que compõem o meu corpo se movimentam em uma certa direção, porque acredito e desejo certas coisas. Acredito também que minhas pernas, meu sistema respiratório, assim como minha memória, minhas crenças e desejos, fazem parte de um todo integrado que me constitui enquanto indivíduo. A resposta funcionalista ao problema da interação entre o mental e o físico busca resgatar esta crença bastante trivial de que somos um todo integrado.

De acordo com a perspectiva funcionalista, a forma adequada de individuar uma entidade é por recurso a suas propriedades funcionais. Dessa forma, o funcionalismo resgata também a nossa convicção de que alguns processos mentais podem ser realizados em estruturas com propriedades físicas distintas. Eles seriam multiplamente realizáveis. Ao identificar um evento mental por suas propriedades funcionais, estaríamos, assim, reconhecendo o caráter necessário de um componente material, porém não reduzindo o evento em questão às propriedades físicas da estrutura material que o realiza.

A forma mais usual de exemplificar a concepção funcional é por meio da construção de modelos ou máquinas programadas para realizar um tipo de funcionamento específico. Nesse caso, as ilustrações vão desde máquinas mais simples, como as que nos oferecem refrigerantes mediante a introdução de moedas de um determinado valor, até as máquinas conexionistas de tipo PDP (Parallel Distribution Process) ou redes neurais. Parece evidente que a complexidade das funções que usualmente realizamos exige que sejamos exemplificados por modelos flexíveis e bastante complexos. Complexos talvez o suficiente para não sermos, ainda, capazes de descrevê-los. Nesse sentido, a proposta funcionalista parece vulnerável a uma objeção de fato, mas, se estivermos corretos, poderá mostrar que, em princípio, nada impede que esta seja a forma mais adequada de descrever o que somos.

Seres humanos, segundo uma descrição funcional, poderiam, assim, operar como um programa flexível composto de vários módulos. No primeiro módulo estaria um scanner, responsável pela recepção dos inputs. A partir daí, podemos imaginar vários módulos, entre os quais um módulo avaliador, responsável pela seleção das informações que chegaram à etapa final, qual seja, a produção de um comportamento específico. A peculiaridade desse tipo de programa estaria na sua capacidade de aprender, ou seja, de alterar o produto em função de um novo input que incluiria os efeitos produzidos pelo comportamento do agente nas etapas anteriores. Em outras palavras, o output gerado promoveria respostas externas que, por sua vez, seriam introduzidas no input e avaliadas pelo programa de forma a fornecer um novo resultado. É desse modo que um modelo programado para reconhecer letras, como o que é utilizado com sucesso nos Correios, altera, ou melhor, aprimora, sua performance na medida em que lhe são oferecidas grafias variadas de uma mesma letra e que o programador responde negativa ou positivamente ao seu reconhecimento ou não de uma letra. Tais modelos são capazes de reordenar os seus dados de forma a passar a reconhecer características anteriormente ignoradas.

Com base na análise funcional de modelos com programa flexível, passaríamos, então, a atender algumas das principais características do modelo humano, como, por exemplo, nossa capacidade de aprender a partir das experiências vividas e de responder de forma diferenciada, inédita, a novas situações. O processo de avaliação dos dados informacionais obtidos e a resposta consecutiva caracterizam o que julgo compreendermos como a capacidade de deliberar. Nesse sentido, nosso tão proclamado poder de deliberação nada mais expressaria do que a totalidade do processo que envolve a verificação, seleção e avaliação de informações e, finalmente, uma resposta comportamental. Do mesmo modo, podemos ainda descrever o que chamamos de liberdade como uma capacidade de conduzir respostas/ações com base numa avaliação e ponderação das diversas informações obtidas.

“Nosso Self  já não pode ser identificado ao cérebro, nem delimitado pelos contornos do nosso corpo físico/biológico. ”

 

Se esta descrição for, realmente, sustentável, teríamos então de enfrentar suas consequências. Já de partida, vemos esmaecer a ideia de uma base fixa, imutável, detentora do que imaginamos ser a nossa essência propriamente humana. A pergunta acerca da identidade de cada ser deverá ser respondida por referência a uma rede de processos que envolve a performance de distintas funções, algumas das quais usualmente descritas por um vocabulário mentalista. A esta rede chamaremos de Self. O Self, assim entendido, não é uma unidade transcendente que controla todo o sistema, nem uma parte específica do mesmo. Ele é uma rede ou uma conjunção de processos. Enquanto tal, está projetado no mundo e em constante processo de transformação. Seu campo informacional é composto de dados oriundos tanto dos limites internos quanto externos ao próprio corpo. Dentro desta descrição, nossos limites tornam-se também flexíveis. Nosso Self já não pode ser identificado ao cérebro, nem delimitado pelos contornos do nosso corpo físico/biológico.

Se quisermos, por exemplo, pensar a nossa atividade cognitiva segundo o modelo funcional da relação inputs/outputs e estados mentais diversos, onde deveríamos estabelecer os limites do processo cognitivo? Segundo a perspectiva funcional, a cognição não poderia ser identificada como uma etapa específica do processo, um estado mental isolado, por exemplo, mas ela seria todo o processo. Nesse caso, ela envolveria necessariamente uma complexa rede de inputs, internos e externos, e outputs. Os elementos que compõem o processo cognitivo fazem, assim, parte de uma estrutura dinâmica, em que os papéis desempenhados estão em constante permuta. Registros deixados em livros, diários, computadores e no nosso entorno ambiental ocupam um papel tão fundamental em nosso set informacional quanto nossas sensações, traços de memórias e as operações realizadas em nosso cérebro.

O papel desempenhado por objetos localizados fora dos limites do nosso corpo, ou ainda, por artefatos, no nosso processo cognitivo, talvez explique por que nosso raciocínio se vê debilitado quando perdemos nossa agenda ou as informações que guardamos em nossos computadores. Pode explicar também a falência cognitiva de idosos que são afastados do lugar, pessoas ou objetos que lhes eram familiares. Segundo essa visão, nosso processo cognitivo se estende, necessariamente, para além do nosso cérebro e dos limites do nosso corpo, pois envolve, como parte constitutiva de seu mecanismo, os inputs que compõem o conteúdo de nossos pensamentos, e o que, em vocabulário kantiano, chamaríamos a síntese destes por meio de conceitos. A linguagem é ela mesma um artefato que incorporamos à nossa estrutura cognitiva e que assume o papel de projetar no mundo parte de nossos conteúdos mentais. A mente ou o Self, entidade narrativa à qual reportamos não apenas nossa cognição, mas a totalidade de nossos estados psicológicos, não é uma entidade que se relaciona ou representa o mundo, mas sim uma rede de processos no mundo.

 

Nós e os outros: entre agentes e concernidos

Minha proposta de redefinição do que somos e nossa descrição como sistemas funcionais visa, sobretudo, ampliar a esfera da moralidade. Em outros textos, defendi como foco da moralidade os diversos sistemas funcionais (DIAS, 2016). Dessa maneira, traduzi o princípio universal do respeito como uma demanda por respeito ou consideração aos funcionamentos básicos dos diversos sistemas e, como fim último da moralidade, o florescimento destes. Ao introduzir essa visão, pretendia romper com uma concepção de moralidade estruturada segundo o paradigma contractualista, em que o grupo dos indivíduos identificados como agentes morais é também o grupo dos concernidos. Em uma concepção desse tipo, pautada no exercício da racionalidade e da autonomia das possíveis partes integrantes de uma situação contratual, não haveria espaço para o reconhecimento moral de indivíduos que jamais seriam capazes de ocupar o papel de agente moral. Procurei mostrar que este seria o caso de muitos seres da espécie humana que, por razões das mais diversas — razões que nos reportam tanto à sua constituição biológica quanto a fatores de ordem socioeconômica ou fatalidades que obstruam o bom exercício de seus funcionamentos —, jamais exercerão, de forma satisfatória, a racionalidade e a autonomia exigidas. Ao tomar como exemplo este grupo, nada pequeno, de seres humanos, pretendia apontar uma incongruência em nossas atitudes morais corriqueiras e, ao tentar corrigi-la, finalmente promover uma ampliação dos limites da nossa comunidade moral.

Servi-me, assim, de uma convicção amplamente compartilhada: a crença de que usualmente não excluímos como objeto de nossa consideração moral os seres humanos nada ou pouco racionais e autônomos. Se de fato pensamos assim, isso significa que já estamos dispostos a distinguir entre os agentes morais — aqueles que tomam atitudes morais e são moralmente responsáveis por elas — e os que chamo concernidos morais, ou seja, os seres que incorporamos à nossa comunidade moral e que julgamos objeto de nossa consideração moral, à revelia da consciência que possam ter sobre isso. Esse passo, acrescido da redefinição anteriormente proposta do que somos, gera, então, uma concepção moral que, tendo como foco os sistemas funcionais, incorpora seres humanos, animais não humanos, objetos inanimados e até mesmo o meio ambiente.

Minha tese é a de que objetos inanimados e o meio ambiente podem ser compreendidos como elementos constitutivos do nosso próprio Self. Como defendi anteriormente, nosso Self não tem como limite o cérebro ou nossa estrutura corporal. Ele incorpora em si objetos e se projeta no mundo. Muitos desses objetos são sistemas acoplados que nos permitem realizar uma série de tarefas e potencializar nossos funcionamentos. Eles abrangem desde óculos, dentaduras, aparelhos auditivos, bengalas e pernas mecânicas até celulares, microcomputadores etc.

Sob o ponto de vista moral, considero que uma das principais vantagens desta visão é que ela retira o estigma que muitos indivíduos carregam de serem pessoas com deficiências por necessitarem de um complemento artificial ou mecânico. Todos os seres humanos possuem sistemas acoplados. Todos possuem objetos que incorporaram como parte constitutiva de sua identidade narrativa. Alguns de nós, contudo, se rendem a um processo de autoilusão que faz com que nos consideremos criaturas genuinamente puras, pertencentes a uma espécie única, que curiosamente se define por oposição aos seres que julgamos pertencer a uma categoria outra, também, frequentemente considerada, hierarquicamente inferior.

Se tais considerações forem razoáveis, nosso dever moral deverá abarcar sistemas funcionais diversos, sejam eles humanos ou não. Por meio do binômio homem-máquina buscamos, agora, apenas uma caracterização mais adequada do que somos, que nos afasta tanto de uma matriz religiosa como da matriz biológica tradicional[2]. O fantasma do cyborg ou da máquina que adquire características humanas deixa de ser um problema moral relevante. Isso porque, embora uma forma de vida moral seja algo propriamente humano e sejam alguns seres humanos os agentes morais por excelência, somos nós, agentes morais, que ao assumir uma certa concepção moral, assumimos, simultaneamente, um compromisso com o florescimento de outros sistemas funcionais, sejam eles humanos ou não.

 

Conclusão

Nesta exposição, procurei desfazer alguns equívocos inerentes à nossa autocompreensão. Abandonando qualquer concepção do que somos que nos reporte a uma essência fixa dos seres humanos, defendi uma descrição funcional que nos caracteriza como estruturas funcionais flexíveis, criaturas que incorporam a si outros sistemas e objetos de forma a melhor realizar seus funcionamentos. Inserindo a moralidade no universo de alternativas dos seres humanos, tracei uma distinção entre os seres que assumem uma forma de vida moral e, por conseguinte, precisam arcar com as consequências dessa escolha, e aqueles indivíduos que incorporamos como objeto de nossa consideração moral, à revelia da consciência que tenham acerca do que isso signifique e, por conseguinte, do endosso que possam dar a nosso universo de práticas morais.

Referências bibliográficas

CLARK, A. Memento’s Revenge: The Extended Mind, Extended. In: STERENLY, K.; WILSON, R. A. (Eds.). The Extended Mind. Cambridge (MA): The MIT Press, 2010.

 

______; CHALMERS, D. The Extended Mind. Analysis, v. 58, p. 10-23, 1998.

 

DENNETT, D. Kinds of Minds: Towards an Understanding of Consciousness. Nova York: Basic Books, 1996.

 

DIAS, M. C. (Org.). A perspectiva dos funcionamentos: em defesa de uma abordagem moral mais inclusiva. Rio de Janeiro: Editora Pirilampo, 2015.

 

______. Sobre nós: expandindo as fronteiras da moralidade. Rio de Janeiro: Editora Pirilampo, 2016.

 

ROCKWELL, W. T. Neither Brain nor Ghost. Cambridge (MA): The MIT Press, 2005.

[1] O dualismo ontológico tradicional é ilustrado de forma exemplar por Descartes nas Meditações.

[2] Não gostaria de excluir a possibilidade de encontrar no cerne da própria biologia autores que possivelmente endossem a concepção aqui defendida. Humberto Maturana, por exemplo, poderia ser um deles.

Share: