Por Renata De Luca
Um dos efeitos duradouros dessa pandemia será uma derrapada nas já insuficientes políticas públicas de combate à perpetuação da pobreza. Sabemos que romper um ciclo em que filhos de famílias socialmente desfavorecidas têm imensas dificuldades de ter um futuro melhor que seus pais implica investimentos em muitas áreas, principalmente em saúde e educação.
Permitir que jovens não repitam histórias de gravidez precoce, subemprego, baixa escolaridade, entre outras mazelas, não é algo que ocorre naturalmente, e são poucas as situações de superação individual. E não é por ausência de esforços! Ocorre que a pobreza estrutural é algo muito difícil de ser vencida e, infelizmente, sem intervenção externa, a tendência é que a situação se repita nas gerações seguintes. Como sair do ciclo?
1 – Investimento na primeira infância: a neurologia nos ensina que crianças formam a base do arsenal cognitivo nos primeiros 18 meses de vida e isso depende diretamente de estímulos provenientes do ambiente onde ela está inserida. Adultos cuidadores que possuam um vocabulário vasto, brinquedos próprios para a idade, alimentação variada e espaço adequado para o desenvolvimento motor são alguns dos fatores que farão diferença não apenas nesse período, mas nas habilidades aprendidas para a vida.
2 – Educação escolar de qualidade: a escola é o primeiro universo com o qual a criança tem contato após os correlacionados à sua origem e muitas vezes significa uma segunda oportunidade para experiências diferentes da vivida. Professores atentos, bem preparados e educadores dedicados podem resgatar o gosto pela aprendizagem, imprimir o desejo de vencer desafios, resgatar autoestimas feridas e ensinar ferramentas que farão diferença no futuro profissional.
Lembro aqui da experiência da escola de Barbiana, criada pelo padre Lorenzo Milani para receber alunos fracassados do sistema educacional italiano. Ele entendia que esses “maus alunos”, filhos de camponeses pobres, eram produtos de um sistema, e não pessoas incapazes de aprender. Fundou no local de uma escola rural desacreditada o que chamou de educação popular: uma sala de aula que funcionava 12 horas por dia, 363 dias por ano, para que a dedicação integral superasse a enorme distância cultural entre a classe social desses alunos e as mais abastadas. Os alunos eram alçados à categoria de cidadãos e ⅓ do tempo das aulas era dedicado à leitura de jornais diários, em que o conteúdo pedagógico era trabalhado a partir da curiosidade despertada nos alunos pelas notícias. Não havia reprovação e os resultados foram surpreendentes: alunos que haviam fracassado anteriormente, nesta escola aprenderam, tornando-se críticos a ponto de escreverem coletivamente o livro Carta a uma professora, dedicado a demonstrar que as escolas tradicionais estavam comprometidas com os valores das classes sociais abastadas. Os autores criaram dois personagens para demonstrar tal tese: Pierino e Gianni. O primeiro é filho de pais da classe média alta e quando chega à escola, já teve inúmeras oportunidades de aprendizagem em casa. Jamais será reprovado e cursará a universidade. Gianni é filho de camponeses analfabetos, repete em todas as séries até fracassar e seus pais o direcionam para o trabalho precoce, concluindo que ele não nasceu para os estudos. No livro, escrito em 1967, os jovens autores dizem para a professora que Gianni fracassa porque a escola não havia sido feita para garotos como ele. Ou seja, o fracasso escolar é produzido.
3 – Políticas de saúde preventivas que ofereçam orientação e assistência a jovens para evitar a gravidez precoce, seguidas de oportunidades de profissionalização e acesso ao primeiro emprego. A taxa de gravidez de adolescentes entre 15 e 19 anos de idade no Brasil está acima da média mundial (em 2020, foram 53 a cada mil mulheres, enquanto no mundo são 41 – UNFPA: Fundo de População das Nações Unidas). A falta de orientação, de opções de entretenimento locais, de acesso a profissionais de saúde preventivamente, somados à ausência de perspectiva, à ilusão de mudar de vida ou à influência religiosa rigorosa levam jovens a serem mães/pais antes da hora e a comprometer seus futuros, aumentando a chance de repetir as experiências de vida de suas mães, sendo comum conviverem no mesmo espaço avós e filhas muito jovens para tais papéis.
Os três pontos levantados neste breve artigo são alguns dos mais relevantes para a quebra de um ciclo de reprodução de mecanismos que retroalimentam a pobreza, tornando-a estrutural. Eles não se resolvem sozinhos, e sim, necessitam de intervenções externas que auxiliem na quebra da repetição onde o local do nascimento parece determinar o futuro.
Muitos desses programas de intervenção foram afetados ou interrompidos durante a pandemia, seja pelo isolamento social, seja por falta de verba. A cada dia sem eles, o dano aumenta e muitos Giannis perdem novas oportunidades.
Renata De Luca
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Diretora de RH da Security Segurança e Serviços, psicóloga (PUC/SP), psicanalista (IP/USP), mestre em Educação (FE/USP) e MBA em Gestão de Pessoas (FGV).