Texto | GUSTAVO DE OLIVEIRA

Os videogames, como forma de expressão artística e cultural, têm a capacidade de explorar questões filosóficas e existenciais de maneira única. Indika, jogo desenvolvido pelo estúdio Odd Meter, exemplifica essa possibilidade ao propor uma reflexão sobre a fé, o livre-arbítrio e a ilusão da independência dentro de sistemas preestabelecidos. Por meio de sua estética e mecânicas, o jogo desafia a noção tradicional de imersão e convida o jogador a questionar sua própria relação com o controle e a realidade simulada.

No cerne da narrativa, acompanhamos Indika, uma freira que vive na Rússia do século XIX, representada com uma atmosfera estética que remete ao cinema de diretores como Yorgos Lanthimos, Ari Aster e Lars Von Trier. Isolada em um mosteiro onde não é bem-aceita, ela recebe a missão de entregar uma carta em um local distante. No entanto, a jornada se revela um processo de autoconhecimento e confronto com sua individualidade reprimida, além de um embate interno com uma voz demoníaca que constantemente sussurra em seus ouvidos. Esse conflito simboliza o dilema humano diante das estabelecidas crenças religiosas e da busca por um sentido próprio na existência.

A estrutura do jogo reforça esse debate ao questionar o conceito de imersão nos videogames. O pesquisador Brendan Keogh, em seu artigo “Playing across worlds: against immersion”, argumenta que os videogames não criam mundos nos quais os jogadores simplesmente entram e experienciam de maneira passiva. Pelo contrário, a interação entre mecânicas, narrativa e design funciona em conjunto com a percepção do jogador sobre a artificialidade da simulação, construindo assim a verdadeira experiência do jogo. Indika utiliza essa premissa para subverter expectativas e escancarar a presença do jogador como um agente externo dentro da obra.

O jogo se vale de uma abordagem visual realista, mas constantemente rompe essa ilusão por meio de elementos que reforçam sua natureza lúdica, como a contagem de pontos, a progressão por níveis e o uso de pixel art para representar aspectos mais etéreos da vida da protagonista. Esses recursos, aparentemente contrastantes com a estética proposta, na verdade dialogam com a temática central do jogo: a gamificação da fé. Assim como em um videogame, a personagem e os demais elementos do mundo de Indika estão submetidos a um conjunto de regras fixas e a um controle superior, questionando a noção de livre-arbítrio e a autonomia individual dentro de sistemas religiosos e ideológicos.

Ao expor essas contradições, Indika propõe uma reflexão sobre o papel da fé e da crença na construção da identidade humana. Se a ideia de imersão nos videogames é uma ilusão, assim como o senso de liberdade dentro de uma estrutura divinamente determinada, até que ponto nossas escolhas são realmente nossas? O jogo nos lembra de que, mesmo quando estamos profundamente envolvidos na experiência, continuamos apertando botões em um controle — uma metáfora para a própria vida e para os limites da liberdade dentro de sistemas rigidamente organizados.

Indika, portanto, não apenas desafia o jogador a reconsiderar sua relação com os videogames, mas também provoca uma reflexão mais ampla sobre crenças e estruturas sociais. O jogo nos convida a questionar aquilo que nos foi ensinado como absoluto e a encarar a incerteza de construir um caminho próprio, sem garantias ou verdades incontestáveis. Em um cenário dominado por convenções estabelecidas, tanto na indústria dos videogames quanto na sociedade em geral, obras como Indika tornam-se essenciais para expandir horizontes e explorar novas formas de pensar e experienciar os mundos digital e real.


Gustavo de Oliveira
Graduando em Jornalismo pelo Centro Universitário Carioca e técnico em administração. Redator desde 2018 com experiência em música e jogos.

Diagramação | RONALDO CAMPOS
Imagem capa | The Guardian/Divulgação

Share: