Por Joyce de Sousa Silva

Para entender a importância da literatura em nossa vida, é necessário, em primeiro lugar, tentar definir o que vem a ser literatura e qual o poder dela sob nós — assunto que, talvez, pela pouquíssima frequência com que se é discutido em todas as camadas sociais, parece concernente somente aos eruditos, estudiosos e intelectuais. Em uma das inúmeras tentativas de compreender a imensa pluralidade de formas, meios e fins que circundam o tema, o linguista Roman Jakobson afirmou que a escrita literária é uma “violência organizada contra a fala comum”. Ou seja, ela é o campo em que nos defrontamos com o universo costumeiro escrito diversamente, de maneira pungente, por meio do uso de símbolos minuciosos, metáforas, metonímias, antíteses, paralelismos, hipérboles etc. Assim, até mesmo um animal ordinário, no mundo literário, pode ser redesenhado para tomar proporções das mais filosóficas, provocantes e inquietantes, como n’A metamorfose de Kafka, ou Paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, em que, ao fechar do livro, jamais poderemos ser os mesmos por culpa de um mero inseto.

O efeito das letras organizadas, por sua vez, encaixa-se na descrição de Anatol Rosenfeld — a respeito da arte como um todo —, em que diz: “O homem, afastando-se da realidade e elevando-se a um mundo simbólico, ao voltar à realidade, lhe apreende melhor a riqueza e profundidade”. Nesses termos, a obra literária é aquela que, em um jogo absorvente, é capaz de colocar o espectador em uma odisseia individual, cuja aventura está repleta de reflexões, aprendizados, paixões, adversidades, deleites e angústias, dados pela singularidade de cada autor, época e ambiente. Ao voltar à pátria — ou à vida comum —, portanto, o “leitor-viajante”, como Odisseu, encontrará um mundo reconstruído, ressignificado, reconhecido e, por fim, reescrito sob seus olhos.

E sua eficácia certamente não acaba aí. De maneira excepcional, serve tanto ao que escreve quanto ao que lê, como ferramenta de compreensão e organização da estrutura interna e externa ao sujeito, do sentimento mais profundamente subjetivo aos fatos mundanos mais racionais e lineares — e, também, dos de ordem contrária, completamente incompreensíveis. Ao escrever ou ler um poema, por exemplo, se é levado a empregar um delicioso esforço para delinear o sentido das palavras, do mundo e de si mesmo ante o lampejo poético. Dessarte, com alguns simples versos, é possível imprimir quaisquer imaterialidades que aparecem, num efêmero momento, para nos inundar a vida inteira.

E esses mesmos versos são capazes de dar espaço a uma retratação histórica especialmente rica, já que manifestam a visão de todo um contexto de vida em que o autor os emprega. Às simples palavras de Homero — fiel adepto da arte da canção e das musas da memória —, devemos o crédito pelo acesso aos códigos culturais de toda uma Grécia arcaica, distante até em sonhos, quando a escrita era ainda recém-nascida, mas não menos potente. Suas obras, com vários séculos de idade, nada têm de dispensável: ainda hoje, são capazes de imprimir marcas a todos que as leem. Tudo isso porque, bem como o canto dos aedos que eternizariam a glória e os feitos de seus heróis, sua literatura o faria viver para sempre na história da humanidade.

Outra poderosa modalidade desse tema é a de descrever e, eventualmente, delatar as iniquidades sociais. Cabe lembrar que não faltam exemplos históricos em que a arte tomara partido para realizar alguma mudança. Porém, as belas letras foram uma das primeiras formas artísticas que versaram sobre os horrores sociais visando repará-los, como em Os miseráveis, em que Victor Hugo, em meio à industrialização, responsabiliza a pobreza, a ignorância e a opressão pela criminalidade que assolava sua — e nossa — época. Essa face social da literatura é uma de suas mais poderosas e indispensáveis características, pois arma a investigação e o desmascaramento da miséria, da exploração e da marginalização que rondam a humanidade desde sempre.

A partir de somente alguns dos mais interessantes aspectos da literatura, já podemos entender sua indispensabilidade e magnificência a todos, porquanto perpassa as esferas psíquica, emocional, social e até mesmo a política, para fazer do ser humano uma criatura mais criativa, sonhadora, compreensiva e crítica. Podemos dizer que, se para Clarice Lispector, “A vida é um soco no estômago”, a arte escrita, por ser extensão da última, é, também, tão intensa quanto a existência: nos desmonta para remontar em território renovado, e nisso está a sua maior beleza e engenhosidade e o seu deleite perigoso.


Joyce de Sousa Silva

Estudante de Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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