Por Joyce de Sousa Silva
Era feito aquela gente honesta, boa e comovida
Que caminha para a morte pensando em vencer na vida
Era feito aquela gente honesta, boa e comovida
Que tem no fim da tarde a sensação
Da missão cumprida
(Belchior)
Em uma incerta madrugada de sonhos semeados ao longe, levantei de súbito, assustado com os ventos premonitórios, e calcei as pantufas macias ao lado da cama. Ao primeiro toque da pele contra a superfície, tive a certeza de que as pantufas, reconhecidas há meses de uso, não eram minhas. Havia comprado-as em uma loja de calçados, após o expediente da fábrica em que trabalhava, por um incontrolável impulso lírico provocado pela publicidade que as diziam confortáveis e perfeitas para caminhar sem sair do mundo dos sonhos. Não as quis logo, digo, não as quis nunca porque não via necessidade: dormia como um morto e jamais concordei em perder o custoso descanso, depois de tanto trabalhar, com onirismos fantásticos, mas a propaganda me fisgou a pensar que um homem como eu, de pés acostumados às botas, mereciam um par de pantufas macias para sabe-se lá o quê de sonos e sonhos.
Fui até o banheiro e, no entanto, também não reconheci o homem que encarava o espelho. Quem era aquele barbudo de olheiras profundas calçando pantufas indesejadas e desconhecidas? A publicidade não mentia, no entanto: enxergava uma enxurrada de coisas familiares, mas que, podendo ser pela cortina diáfana do que seria o rastro de um sonho, tornavam a si — e a mim — profundas desconhecidas. O despertador soou a última badalada para chegar antes do patrão à fábrica e me desenterrar daquele transe medonho. Tive medo de sair de casa sem ao menos encontrar alguma folha de papel timbrado que explicasse esses súbitos questionamentos fatais à minha rotina. O conhecido motor, porém, roncava em meu peito ofegante para que eu deixasse a busca logo e não levasse um desconto na folha de pagamento por estresse ou descompostura.
Desci no metrô e me meti numa fila do que parecia ser gente. Mas aquela estranheza não me abandonava os olhos e, de repente, pareceu-me nada humana a maneira como a fila era infinita, milimétrica e ininterruptamente organizada em um sentido impensado. Aonde ia aquele povo oco? E enquanto a propaganda da maldita pantufa dos sonhos brilhava ao lado de outras luzes superficiais, pensava que ninguém se perguntaria por que diabos havia comprado calçados inúteis ou quem os estava encarando no espelho, ou mesmo procurava uma folha de identidade que o impedisse de tomar, mais um dia, um metrô a um sentido de desejos injustificados de possuir até os pés um conforto que jamais os confortaria.
Machucou-me a garganta um grito desconhecido, até então. Um grito mudo e suplicante, composto de estalos efervescentes que desejavam vir à tona. Seria vontade de “liberdade”? A primeira e última vez que ouvi palavra semelhante fora anos atrás, enquanto almoçava no refeitório e assistia a uma matéria no jornal do meio-dia que chamava aos últimos grevistas da história “libertinos” e vadios incivilizados que não queriam trabalhar. Mas não encontrei palavra alguma ao meu desespero que não rebatesse naqueles rostos inermes para me jogar, como libertino, no chão frio da humanidade histericamente organizada. Enfim, confundi-me na multidão sem rosto.
Ao fim do expediente, me vi, pela primeira vez, em uma passarela sem céu e confundi os fios de eletricidade com algemas de aço. Em agonia inominada e ansiedade inconsciente, com as mãos calejadas de reprimir os medos inapropriados, sentia-me adormecido de espremer os olhos contra a realidade que me estrangulava a garganta. Voltei ao meu casulo atordoado e me protegi de todos os ventos premonitórios: se, pela manhã, o ar me faltasse novamente, enfiaria os pés em minhas pantufas e me esconderia do espelho entre as mãos grossas e sujas de graxa. Se, pelo fim da tarde, se aproximasse de mim um demônio libertino para zombar da minha servidão idiota, assopraria em seus olhos fumaça de cigarro, como uma máquina, e caminharia enfileirado em direção ao meu mais que recompensante descanso.
E adormeci o mais rápido que pude.
Joyce de Sousa Silva
Estudante de Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.