Por Camila Barreto

A língua dos cancioneiros e trovadores, de Camões e de Pessoa e, de certo modo, nossa língua também. O português é uma língua neolatina de extrema importância histórica e cultural que está presente na Europa, na América do Sul, na Ásia e na África. É também a história da construção da identidade de um povo enquanto nação unificada e independente, que fez da língua e da literatura mecanismos de conquista e de autoafirmação.

A língua originou-se do latim, mais precisamente do chamado latim vulgar, aquele que era mais falado pela população nas cidadelas do Império Romano. No contexto de expansão do Império, questões geopolíticas propiciaram modificações nesse linguajar popular, e o latim vulgar diversificou-se a ponto de originar novas línguas, chamadas, portanto, de línguas românicas.

A romanização da Península Ibérica começa no século II a.C., e o advento da invasão romana influenciou a organização linguística e espacial da região, pois após a conquista do país, todos os povos de lá, exceto os bascos, adotaram o latim como língua. Houve, ainda, o contato entre o latim e outras línguas, principalmente com as árabes, tendo em vista que a invasão muçulmana e a posterior reconquista são fatores imprescindíveis para o processo de formação linguística na Península. A partir desses movimentos, surgirá então a língua galaico-portuguesa, entre os séculos IX e XII. Já os primeiros textos escritos em português, por sua vez, datam do século XIII.

Mas a definição do português como língua oficial de um povo acontece durante a unificação do Reino de Portugal, pois, a partir daí, a nação também será linguisticamente unificada, e a falta de fronteiras físicas com a região de Castela — a Espanha — será compensada pelas fronteiras linguísticas e culturais.

Outrossim, a produção literária floresce durante a Idade Média, com as cantigas de amigo e as cantigas de escárnio e maldizer, que eram cantadas em praças e espaços públicos. As canções de amor cortês de Dom Dinis, por exemplo, formalizam um discurso para falar do amor ocidental — que muito nos diz sobre a criação desse amor ocidental em si — e que, apesar da origem provençal, revelam como a literatura portuguesa conciliava a importação das modas literárias estrangeiras com a construção de sua própria identidade nacional. Tratava-se, assim, de mostrar que mesmo a moda poderia ser modificada e incorporada com traços da sociedade e do pensamento português.

E você já deve ter ouvido falar que a palavra “saudade” não tem tradução para outras línguas, não é? Pois não é bem assim. Na verdade, existe, sim, tradução para a palavra saudade, mas a sua definição foi criada por Dom Duarte no século XV. Essa foi a primeira vez que o sentimento saudade foi conceitualizado, o que demonstra a criação de uma cultura que não apenas tem suas palavras derivadas do latim, mas que também tem sentimentos próprios, pois como escreveu Dom Duarte:

“E a saudade não descende de cada uma destas partes, mas é um sentido do coração que vem da sensualidade, e não da razão, e faz sentir às vezes os sentidos da tristeza e do nojo. […] E para entender isto, não cumpre ler por outros livros, ca poucos acharão que delo falem, mas cada um vendo o que escrevo, considere seu coração no que já por feitos desvairados tem sentido, e poderá ver e julgar se falo certo.” (O Leal Conselheiro, D. Duarte).

Da literatura medieval à contemporânea, da unificação à colonização, o português é uma língua cujas nuances carregam em si a história de construção de uma identidade nacional. Afinal, são quase nove séculos de história e produção escrita, além do fato de que a língua foi sinônimo de expansão e domínio, pois os portugueses também a utilizaram para se apropriar das terras às quais chegavam. A língua que desembarcou no Brasil em 1500. A língua da saudade. O português nos conta a potência literária e linguística de um povo que tem como identidade a sua língua.


Camila Barreto foi a vencedora do Projeto Escrita 2019. Atualmente estuda Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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