Por Renata De Luca

“Se o bom de viver é estar vivo”, como canta a gingada canção do grupo Cidade Negra, aqui estamos nós, presenciando algo impensável há poucos meses. Ninguém, exceto Bill Gates e outros visionários, imaginou o que está acontecendo: vidas interrompidas, ruas desertas, confinamentos, vulnerabilidade em todos os setores.

Estamos presenciando a contragosto algo novo para nossas gerações, cujas agendas foram suspensas, os costumes revisados e valores questionados, nos transportando para um hiato num mundo com tanta sabedoria, hiperconectado, imbatível em desafios complexos. Cadê a inteligência artificial, a internet das coisas, o armazenamento em nuvem, a revolução digital e todos aqueles assuntos que nos transportavam para o futuro? A impressão que se tem é que nos foi aplicada uma rasteira.

Repentinamente, a única solução para muitos é ficar em casa e continuar trabalhando nesta nova rotina, aguardando o amanhã, acompanhando notícias, cuidando dos mais vulneráveis, valorizando os profissionais que estão no front e torcendo para que a vida volte à normalidade. Enquanto isso, cada um reage como pode. Há os fatalistas, os iludidos, os incompetentes, os generosos, os egoístas, os ponderados. Pois uma situação aguda não nos transforma, apenas faz emergir algo que sempre esteve ali. É claro que atualmente as redes sociais estampam!

Mas quem vivia em uma redoma continua dentro e posta coisas “fofas” de suas últimas descobertas: vida em família, a existência do aspirador de pó, insights durante um banho de banheira, ensinamentos para a humanidade, a beleza dos seus jardins, habilidades culinárias de chef, adaptação doméstica do treino etc. Muito difícil ter a consciência dos seus privilégios, agradecer e guardar para si.

Quem é folgado continua esperando que alguém apareça com a mágica, enrolando o chefe no home office, esquivando-se das responsabilidades, comemorando as férias. Quem sempre arregaça as mangas já assumiu novas responsabilidades, tomou a frente dos problemas e colocou-se como protagonista.

Errado está quem espera grandes e repentinas reviravoltas, pois o ser humano resiste às mudanças, apega-se ao conhecido e demora para agir diante do novo. Se sai melhor no susto quem tem grandes líderes e obedece às instruções confiantemente até que a estabilidade retorne.

Latências se tornaram evidentes, saíram da penumbra. A desigualdade social gritou, o subemprego estampou, o despreparo político envergonhou, preconceitos coraram. E nesse intervalo entre o antes e o depois, aparecem belas surpresas como os avós que aprenderam a fazer FaceTime, escolas que abriram seus conteúdos gratuitamente, jovens assistindo a lives de shows com os amigos, celebrações on-line, iniciativas para comprar do pequeno produtor, vizinhos que se conheceram, contribuição aos vulneráveis etc.

O futuro preocupa, naturalmente. Alguns institutos já arriscam previsões negativas de impactos no emprego e a economia enterrando 2020. Os novos e mais flexíveis modelos de trabalho estão sendo testados e esse será um legado que a crise deixará, essa aprendizagem forçada da performance a distância. A consultoria McKinsey expôs em uma recente pesquisa que 80% das maiores companhias do mundo estão revendo seus paradigmas de trabalho e acreditam que terão aprendizagens na maneira de operar, podendo continuar com essas práticas após a crise. Muitas companhias estão atentas ao comportamento dos seus membros neste momento inédito, observando sua capacidade de resolver problemas, de reagir aos obstáculos e o grau de equilíbrio emocional. Certamente teremos movimentos interessantes e felizes daqueles que estão aproveitando este tempo para fortalecer sua empregabilidade, estudando, inovando e cooperando, pois a corrida pelo trabalho tende a aumentar diante do iminente aumento do desemprego.

Considero uma boa ideia para o momento uma visita aos clássicos: livros, textos, filmes, cartas, fotos. Algumas respostas para nossas aflições estão lá, pois não é a primeira vez que a humanidade depara com um grande sofrimento. Como neste parágrafo que encontrei na carta do jovem Werther, escrita em 22 de maio de 1771: “Também estão bem aqueles que dão títulos pomposos às suas miseráveis ocupações ou mesmo às suas paixões, qualificando-as como operações gigantescas para a cura e o bem-estar do gênero humano. Feliz aquele que pode ser assim! Mas quem, no entanto, reconhece em sua humildade aonde tudo isso leva, quem vê como cada cidadão satisfeito sabe fazer de seu pequeno jardim um paraíso, e como também o infeliz ofega incansavelmente sob o fardo que carrega pelo seu caminho, e que todos estão igualmente interessados em ver, por mais um minuto, a luz do sol — sim, esse se cala e cria o seu mundo a partir de si mesmo e também é feliz, porque é um ser humano. E então, por mais limitado que ele seja, traz sempre em seu coração a doce sensação de liberdade, sabendo que pode sair dessa prisão quando quiser”.

Desejo que durante a quarentena consigamos fazer dos nossos pequenos jardins um paraíso.


Renata De Luca

E-mail: [email protected]

Diretora de RH da Security Segurança e Serviços, psicóloga (PUC/SP), psicanalista (IP/USP), mestre em Educação (FE/USP) e MBA em Gestão de Pessoas (FGV).

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