Por Anderson Borges Costa

Estou isolado desde março de 2020. Sem sair à rua, sem andar na calçada, sem sentir o cheiro da fumaça dos ônibus, sem entrar no banco, sem esperar na fila do pãozinho na padaria, sem apertar a mão de alguém. Estou mascarado. Sinto o hálito no meu rosto. Sinto minha unha crescer, meu cabelo embranquecer para baixo, minha saliva mergulhar pela garganta. Meu nariz respira o isolamento que já conta praticamente um outono e um inverno inteiros. O isolamento é frio.

O sol nasce no meu quarto, a noite nasce na minha sala, a notícia nasce na TV todos os dias em mil e uma mortes. Estou isolado dentro de um distanciamento. Sem pessoas para trocar um aperto de mão, eu me isolo no abraço que os livros me oferecem. A pandemia espalha vírus impressos em páginas as quais eu tenho permissão de olhar sem usar máscaras. Na pandemia do coronavírus, isolado em casa, me martelo na madeira da estante que sustenta um universo em verso e prosa.

Encarcerado no meu quarto, me permito ser algemado por livros que tonificam o limite de meus movimentos. Sou observado pelo olho do Grande Irmão de “1984” e volto assustado para a poltrona. Tento olhar pela janela, mas não consigo enxergar nada além de uma branca capa de papel de “O Ensaio sobre a Cegueira”. Viro as páginas do romance do Saramago e percebo que já estou em outro livro, agora no Brasil, ainda cego dentro de “Não Verás País Nenhum”. De Loyola ao Canadá, eu entendo que o isolamento é mundial, em todos os cantos, todos os contos e desencontros do “Conto da Aia”. Vou à cozinha e espremo um suco artificial de uma amarga “Laranja Mecânica”. No primeiro gole, me transformo em uma barata.

“A Metamorfose” me provoca pesadelos em uma noite de sonhos intranquilos nos quais “Eu, Robô”, só penso em roubar um “Admirável Mundo Novo” no qual “Androides sonham com Ovelhas Elétricas” e “A Estrada” é a rouca voz de um “Homem na Escuridão”. Já no banheiro, me olho no espelho e berro para ninguém ouvir: “Não me abandone jamais”. E, sem achar graça nenhuma, choro no subsolo na “Divina Comédia”. O isolamento destrói o tempo em uma fria “Máquina do Tempo”.

Estou isolado desde março de 2020. Espirro a tinta dos parágrafos. Expiro as capas dos capítulos. E inspiro histórias que me fazem escapar de um isolamento físico, que me inspira a entrar desmascarado em distopias fictícias que apertam a minha mão. Isolado em casa, eu respiro, expiro, inspiro. E, na solidão de um livro ao alcance de meus dedos higienizados de contato humano, eu piro.


Anderson Borges Costa, brasileiro, é autor dos romances “Rua Direita” (Chiado, 2013), “Avenida Paulista, 22″ (Giostri, 2019) e do livro de contos “O Livro que não Escrevi” (Giostri, 2016 – do qual, um dos contos foi traduzido para o inglês no Canadá), além das peças teatrais “Quarto Feito de Cinzas” (traduzida para o italiano para ser apresentada na Itália), “Elevador para o Paraíso” e “Três por Quarto”. Finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura (categorias Livro do Ano e Escritor do Ano). É coordenador do Departamento de Português da escola internacional Saint Nicholas, em São Paulo, onde também atua como professor de Português e de Literatura Brasileira. É professor de Inglês no curso Cel Lep. Formado e pós-graduado pela Universidade de São Paulo em Letras (Português, Inglês e Alemão), é crítico literário e resenhista de livros para várias revistas de arte e literatura, como a “Germina”, onde assina a coluna “Adrenalina nas Entrelinhas”. É paulistano e nasceu em 29 de janeiro de 1965. Participou do último filme da diretora Anna Muylaert, “Mãe só há uma”, fazendo uma figuração como o professor de literatura do protagonista.

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