Prof. Gustavo Dainezi
Comunicador pela ECA/USP, pesquisador de ética, Comunicação e Consumo pela ESPM, membro do comitê de ética da APAE, professor e pesquisador do Espaço Ética

Resumo: julgamentos precipitados dos fatos, nos levam muito mais a errar do que acertar. É preciso cautela e reflexão antes de qualquer conclusão, pois quando falamos de ética e moral, também falamos da condição humana. Condição essa que pode aniquilar a vida ou transformá-la numa existência sublime. Portanto, não importa o caminho a seguir, as escolhas a fazer etc. O que é necessário e indispensável é a reflexão antecipada ante qualquer ação.

Palavras-chave: Ética. Moral. Bom senso. Senso comum.

Toda vez que me apresento como pesquisador de ética, invariavelmente a conversa continua com “está faltando, hein!” e depois, dependendo do meu humor, um debate mais ou menos acalorado sobre como o mundo é, como poderia ser e como deveria ser. Mais frequentemente a última possibilidade. Diferentemente de quando encontramos um médico e sentimos vontade de perguntar a ele sobre cada coceira e bereba que surgem em nosso corpo, o encontro com um “eticóligo” é uma oportunidade rara de expor tudo aquilo que se pensa que está errado com o mundo, para que ele ouça e concorde. Ao menos é isso que esperam de mim. Já ouvi umas 500 formas de como o mundo deveria ser. Uma mais mirabolante que a outra. Todas recitadas sob um manto de convicção inquebrantável, nem mesmo pelo interlocutor “especialista”. Não vêm em forma de pergunta, como viriam a um médico, mas sim em forma de lei, como viriam de um parlamento. Eu me divirto. Quando estou descansado e paciente. Quando estou disposto a me engajar no debate, digo algo mais ou menos assim:

Como regra geral, é mais provável que a primeiríssima coisa que pensamos sobre algo seja um erro do que um acerto. É mais fácil errar de primeira do que acertar de primeira. O hole in one do golfe é um momento raríssimo, logo, comemorado. Entretanto, quando falamos de julgar a vida e julgar o mundo, costumamos não só ignorar esta regra como, com espantosa frequência, invertê-la. O que quero dizer é que aquela coisa que todos acham que têm mais que todo mundo (o bom senso) nos leva a passar do estado de reflexão ao estado de certeza e julgamento na velocidade de uma sinapse. Por isso, muito de nosso julgamento moral é isto — julgamento. Caímos na armadilha de pensar que já ‘chegamos lá’ do ponto de vista moral, e que além de já sabermos como viver e conviver, sabemos o único e melhor jeito de fazê-lo.

Esta é a ilusão moral do senso comum. Facilmente identificável em uma conversação, geralmente é apresentada com um “tá vendo?!” ou um “olha aí”, ou então “é por isso que eu digo”. Pode também vir com a variante “esse mundo está perdido mesmo” e “[ética] está faltando, viu…”. Ninguém tem culpa de agir assim. Trata-se de uma pegadinha cerebral, uma pegadinha do costume e dessa coisa que é a mais perniciosamente distribuída da história. O tal do bom senso. Ele, que aparece para nós como que uma tendência quase natural a saber não só o que é o bom e o justo, mas o que é o melhor e o mais justo, sempre com uma obviedade tal que causa raiva ao não se reconhecê-la no outro. Pois curiosamente o outro, segundo seu próprio bom senso, pode chegar a uma conclusão contrária à nossa. Isso acontece porque o senso comum é o grande ingrediente do ‘bom senso’, que acaba se formatando como uma forma individualizada de interpretação de uma série de fatores político-sociais e culturais, que são radicalmente únicos para cada um de nós. Assim, ao passo em que é o bem mais distribuído do mundo, o bom senso não passa de uma ilusão de conhecimento, ou melhor, um conhecimento calcado no hábito e não na reflexão. Quando se diz “é questão de bom senso”, na verdade diz-se: é questão do meu hábito. Logo, sempre quando me param para explicar por que o mundo está perdido, enquanto pensam estar dissertando filosoficamente sobre a desgraça do mundo e a solução inabalável para sua recuperação, na verdade o que chega aos meus ouvidos é uma fotografia da história dos conflitos entre os hábitos de uma pessoa e o mundo que a cerca e afeta incessantemente, com frequência de maneira entristecedora, logo a indignação.

É improvável que as respostas e os valores que o nosso hábito cristalizou em nós sejam equivalentes à definição do melhor mundo possível para todos.

 

Mas voltemos à minha primeira asserção: temos mais chances de errar de primeira do que de acertar. Junte-se a isso a reflexão sobre o ‘bom senso’ e temos como resultado lógico: é mais provável que a resposta do nosso ‘bom senso’ seja errada, ou, para falar em termos morais, irrefletida. Indo mais longe: é improvável que as respostas e os valores que o nosso hábito cristalizou em nós sejam equivalentes à definição do melhor mundo possível para todos. Do ponto de vista moral, esta é uma armadilha em que caímos com uma frequência assustadora e que aniquila uma imensa gama de oportunidades de desenvolvimento moral, tanto do ponto de vista individual quanto do ponto de vista social. Isso não quer dizer que o hábito e o bom senso não tenham sua utilidade na facilitação da vida. Mas esse é um assunto para outra coluna. Por que este diagnóstico e como remediar, afinal, essa situação? Para entender como a ética sofre com a certeza antecipatória do bom senso precisamos entender as condições fundamentais de sua existência.

O que é ética, afinal?

Preocupações morais podem ser observadas desde os primeiros registros literários da história. Se você se interessar, confira o mito de Gilgamesh, o rei mesopotâmico, retratado ainda na escrita cuneiforme. Também são parte fundante das mitologias e constituem preocupação central da filosofia, desde seu primeiro dia. Parte-se inexoravelmente da constatação de que nós não somos capazes de viver com aquilo que a natureza nos deu. Animais vivem regidos 100% pelo seu instinto. As estações, as marés, os ventos, as chuvas, todas as forças naturais seguem uma dinâmica que é tão inevitável quanto equilibrada. Tudo aquilo que não é humano tem o privilégio de estar pronto por natureza. Pois nós não.

Falta-nos tudo. Tudo mesmo. Nós perdemos para qualquer coisa da natureza, no “um contra um”. Perdemos para um gato, para um cachorro, para uma vaca. Quesitos unhada, velocidade, coice. Três a zero para a natureza. Coloque o critério que quiser. Perdemos. Não temos recursos naturais para lidar com o mundo. Nus, perecemos no frio e no calor, no deserto e no mar. Não estamos prontos para nada. Sem cuidado intensivo por muitos anos, não conseguimos nem nos alimentar.

Esta é a nossa condição. Seres de natureza fraca. Mas então, o que fazer? Que solução encontramos para substituir esta dificuldade fundamental?

Na absoluta falta de resposta pronta da natureza, na impossibilidade de recorrer a um instinto, a cada encontro com o mundo cabe-nos responder a uma pergunta que nunca nos abandona: o que fazer? Ou, transcrevendo-a de maneira mais completa: O que fazer para que a vida seja a melhor possível? Ou, refinando-a ainda mais: O que fazer para que a vida seja FELIZ? Para respondê-la, devemos pensar. Medir caminhos possíveis e descobrir pela nossa racionalidade qual é o melhor. Comparamos os caminhos por meio de valores. Escolhendo os melhores valores, decidimos por uma vida em detrimento de outra, minuto a minuto. Nossa condição é a de, instante a instante, escolha a escolha, pincelar a obra de arte que será a nossa vida. E isso mais nada na natureza pode fazer. Porque o resto da natureza não tem liberdade existencial, já que está confinado ao seu caminho predeterminado. Nós podemos ser literalmente o que quisermos.

Cheguei aonde queria chegar. Pincelar a vida, compô-la a partir de escolhas ininterruptas, a isso chamamos de ética. Bem diferente daquilo que estamos acostumados a ver por aí, não é? Porque por aí falamos muito a partir da primeira impressão. E ela tem sempre mais chance de estar errada. Porque as pessoas vêm falar comigo sobre aquelas que elas acham que “não têm ética”, por se comportarem desta ou daquela maneira, mas é preciso entender que, se ética é a escolha da maneira de viver, a partir de determinados valores, todos que escolhem vidas em detrimento de outras são éticos. Isso não quer dizer que sejam pessoas boas imediatamente. Nessa perspectiva, uma pessoa que escolhe o egoísmo, a fraude e a apropriação indevida da propriedade alheia como valores tem uma ética. Mas esta ética não é boa. Ainda assim é uma ética. Portanto, todo tipo de ética é possível de ser adotada, e a única pessoa sem ética é aquela que, por cristalizar seus valores (pelo bom senso, por exemplo) ou entregar a gestão da sua vida a uma fórmula pronta, deixa de escolher. Toda vez que deixamos de escolher, abrimos mão da nossa humanidade, da nossa liberdade, da nossa ética.

Por isso, sempre que tenho paciência, digo para as pessoas: a parte da ética que precisamos exercitar é a da reflexão. Ela é mais libertadora que o julgamento, e é a única maneira de tentarmos descobrir, afinal, de que maneira a vida pode ser mais feliz.

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