Por Camila Barreto
O mito do Rei Midas e o toque de ouro conta que este rei, ao resgatar um seguidor do deus Dionísio, tem um desejo concedido. Ambicioso como era, pediu ao deus o poder de transformar em ouro tudo aquilo que tocasse, e assim o foi. Todavia, o sonho acabou se tornando um pesadelo, pois até mesmo a água que tocava o Rei virava ouro derretido, e já não era mais capaz de matar a sua sede; sua cama virou, então, uma barra de ouro fria e rígida, e já não servia mais ao seu propósito. Arrependido de sua cupidez em demasia, o Rei pediu ao deus Dionísio que desfizesse o feitiço.
Muito presente na mitologia e na literatura desde a Antiguidade, bem como em outras formas de arte até os dias de hoje, a ganância se caracteriza como uma ambição desmedida, uma avidez quase inesgotável por posses, conquistas, poder e riqueza. Essa característica pode ser considerada inerente ao ser humano por se tratar de uma condição comportamental à qual todos estão sujeitos.
É fato que durante o seu processo de evolução, o ser humano precisou de certa ambição para a sua própria sobrevivência. O desejo em si não é algo condenável, então não tem problema algum ser ambicioso com moderação, afinal, são esses desejos que nos permitem alcançar determinadas conquistas em nossas vidas.
A ganância, no entanto, pode ocasionar graves problemas em nível coletivo, e não raro nos deparamos com notícias de conflitos, injustiças e até mesmo crises por conta da ambição desenfreada de algumas pessoas. Essa prática, que leva à corrupção, à exploração de pessoas e recursos e também a práticas empresariais antiéticas, tem mostrado sua face mais letal e trágica nos últimos tempos.
O que mais explicaria o fato de que a parcela mais rica da população mundial fica cada vez mais rica enquanto a parcela mais pobre — que é bem maior — fica cada vez mais pobre? Simples: um regime econômico baseado na ganância, como pontuou o filósofo e escritor Luiz Felipe Pondé.
Embora a crítica liberal garanta que essa avidez seja “menos destrutiva” sob o capitalismo, posto que é mais bem canalizada por ele para fins produtivos e lucrativos, a decorrente exploração de recursos para lucro e benefício de alguns tem colaborado para a acentuação da pobreza ao redor do mundo, além da visível e quase irreversível destruição do meio ambiente.
Obviamente não é tarefa fácil estabelecer um único manual de instruções para deixar de ser ganancioso de uma vez por todas — e, acredite, muitas tradições religiosas e filosóficas já se debruçaram muito sobre isso! —, então é aqui que entra o bom senso para lidar com a ganância nossa de cada dia.
Como quase tudo em nossa vida, a potencialidade da nossa ambição deve ser bem dosada, tendo em vista que somos seres individuais que compõem uma sociedade, e que para a nossa própria saúde e bem-estar, é preciso que sejamos coerentes. Se a ganância é sede insaciável, é preciso usar de alguma dose extra de parcimônia. Enquanto a ética sóbria e empática pairar sobre nós, podemos conviver com a cupidez sem nos submetermos a ela.
Camila Barreto venceu o Projeto Escrita 2019. Atualmente estuda Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.