Por Homero Santiago
Em 1677, publicou-se em Amsterdã um volume com as Obras póstumas do filósofo holandês Bento de Espinosa (1632-1677); entre as cartas e textos inacabados — estes, lúgubres indícios de uma vida interrompida no auge —, incluía-se um trabalho terminado com o intrigante título Ética demonstrada segundo a ordem geométrica. Era um texto latino acuradamente composto, de extensão média e redigido sob uma forma que de imediato salta aos olhos: a mesma que Euclides utilizou na antiguidade para elaborar os Elementos que fundaram a geometria até hoje estudada nas nossas escolas. A Ética estava destinada a tornar-se um dos textos mais insólitos e fascinantes da história do pensamento, sendo no curso dos séculos amada e odiada, analisada e satanizada, sempre com paixão. O seu objeto primordial é o infinito.
Nas palavras do poeta argentino Jorge Luis Borges, que dedicou à figura de Espinosa dois sonetos, o filósofo era capaz de lavrar o infinito. Vejamos um desses poemas, vertido ao português por Haroldo de Campos. E para que o leitor não perca os detalhes, vale lembrar que Espinosa era filho de judeus lusos arribados em Amsterdã fugindo da Inquisição.
As translúcidas mãos desse judeu
Em meio à sombra lavram os cristais
É medo e frio a tarde que morreu
(E às tardes as tardes são iguais.)
Tanto as mãos como o espaço de jacinto
Que empalidece no confim do Gueto
Quase inexistem para o homem quieto
Que está sonhando um claro labirinto.
Nem o perturba a glória, esse reflexo
Dos reflexos do sonho de outro espelho,
Nem o amor temeroso das donzelas.
Liberto da metáfora e do mito
Lavra um árduo cristal: o infinito
Mapa do Ser que é todas as estrelas.
Como lavra a Ética esse mapa do ser, o infinito?
Existe uma única substância e esta é Deus. Dentre as inúmeras inovações da filosofia espinosana, talvez nenhuma seja tão singular nem tenha provocado tanto escândalo quanto essa. O espinosismo pode ser entendido como o estudo aprofundado das implicações da afirmação de que há uma única realidade, Deus, e que todas as coisas são Deus na medida em que são modificações dele (“Deus ou a natureza”, consoante uma famosa fórmula). A tese rompe com a pregnante concepção de um Deus pessoal, voluntarioso, bondoso, criador de um mundo que lhe é diverso e do qual está separado. Rigorosamente falando, o real não tem um Deus, muito menos um criador; o real é Deus, o ser absolutamente infinito.
Assentada essa base, Espinosa toma-nos pela mão e nos convida a uma investigação acerca das coisas que dizem respeito à liberdade e à felicidade humanas — eis a razão do título, inaudito para uma meditação sobre o infinito: Ética. O filósofo estuda detidamente a mente e o corpo humanos; em seguida, debruça-se sobre os nossos afetos, desde os básicos (desejo, alegria, tristeza) até os que desses derivam, exprimindo as incessantes variações de nosso ser, ora submetido à força do que nos é exterior (a servidão), ora sendo causa daquilo que ocorre em nós (a liberdade). O escopo último da obra é compreender a nossa plena união com o real; algo daquilo que se exprime nestas palavras: “sentimos e experimentamos que somos eternos”. Ou seja, a compreensão e a experiência de uma plenitude que somos nós.
Ora, um aspecto deveras notável é que esse monumento filosófico, longe de qualquer pendor místico, delineia o seu percurso mediante um cerrado trabalho conceitual cujo instrumento é a palavra. Para recordar um verso de outro soneto de Borges dedicado a Espinosa, este erige Deus “com palavras”. Não será por outra razão que raramente tanto se exigiu de uma língua, no caso a latina, para pôr-se à altura de seu objeto; e daí ainda, por natural consequência, ser ingente o desafio imposto a quem deseja e ousa verter ao próprio idioma a trama linguística espinosana.
Dito isso, gostaria de convidar os leitores a conhecer, ou redescobrir, a Ética de Espinosa numa nova tradução, lançada no começo deste ano pela Editora 34. Trata-se de um trabalho primoroso do professor português Diego Pires Aurélio e que faz jus a todas as mais estritas exigências de um texto que tem por objeto o infinito. Após ter vertido ao vernáculo duas outras obras de Espinosa (o Tratado teológico-político e o Tratado político, ambos publicados pela editora Martins Fontes) e sendo profundo conhecedor da fortuna crítica espinosana (uma alentada e instrutiva introdução ao volume é disso prova cabal), Pires Aurélio soube mobilizar toda a experiência acumulada na elaboração de um texto em que o rigor, a clareza e a elegância se conciliam perfeitamente para exprimir em nossa língua a magnitude e as intenções originais da apaixonante obra de Espinosa.
Convém ser sincero e alertar que a leitura não é fácil nem a compreensão, imediata. O próprio Espinosa sabia que nem a Ética nem a sua filosofia dispensavam certo esforço, e por isso termina o livro alertando que “tudo que é sublime é tão difícil quanto raro”. Seja. Mas por que não tentar? Os obstáculos não são infinitos, mas a leitura pode trazer um ganho que certamente o será.
Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.