“— Não vos queixeis, ó filho da ansiedade,
Que eu mesmo, desde toda a eternidade,
Também me busco a mim… sem me encontrar!”
(“Ignotus”,
Antero de Quental)

Por Ronaldo Campos

Em 1959, o psicólogo social Milton Rokeach internou no mesmo quarto do hospital Ypsilanti State, em Michigan, três pacientes que acreditavam ser Jesus Cristo. Ele imaginou que se os pacientes descobrissem que havia outros Jesus Cristo, eles mudariam suas autopercepções.

Rokeach tomou essa decisão com base num caso famoso ocorrido no século XVII. O paciente se chamava Simon Morin, que afirmava ser Jesus Cristo. Ao ser internado no manicômio, Morin ficou tão chocado com a loucura de outro paciente, que também dizia ser Jesus Cristo, que ele acabou reconhecendo sua sandice. Porém, infelizmente, Morin voltou à convicção de que era Jesus Cristo. Naquela época, os métodos científicos eram pouco avançados, então os médicos não encontraram outra solução a não ser queimá-lo na fogueira por blasfêmia.

Ainda bem que nenhum dos pacientes de Ypsilanti foi jogado à fogueira. No entanto, um deles acabou renunciando à sua convicção; o outro achou que os outros dois eram insanos, mas ele não; e o terceiro dissimulava o assunto toda vez que vinha à tona. Apenas um dos pacientes conseguiu reconstruir sua autoimagem. Porém, não é preciso ir tão longe para notar que a nossa autoimagem e a imagem que os outros fazem de nós, muitas vezes, não andam juntas. Isso causa uma incessante busca para reconciliar a pessoa que gostaríamos de ser com a pessoa que de fato detém os pensamentos e ações do dia a dia da nossa existência real.

Os psicólogos freudianos explicam que o ego luta constantemente para manter a “verdade” do indivíduo. As pessoas “normais” — estudantes, professores, médicos, executivos etc. — tendem a pensar em si mesmas como competentes e eficientes, mesmo que não sejam. Será que um executivo que não atingiu as metas do ano inclui em seus pensamentos se ele é realmente capaz para desempenhar aquele cargo? E um médico que realiza uma má cirurgia, chega a pensar que ele possa ter cometido algum erro? Um motorista que causa um acidente se culpa pelo erro ou apenas responsabiliza o outro motorista?

O psicólogo Jonathan Haidt diz que há duas maneiras para se chegar à “verdade” do sujeito: pelo método do cientista e pelo método do advogado. Pelo método do cientista, a pessoa busca evidências, regularidades e explicações observáveis e verificáveis sobre sua personalidade. Pelo método do advogado, a pessoa parte da conclusão sobre sua personalidade para tentar convencer os outros, e depois procura evidências que a apoiam e descarta aquelas que estão em desacordo. Haidt conclui que a mente humana foi projetada para ser tanto cientista quanto advogada. Conscientemente buscamos a “verdade” sobre nós mesmos e inconsciente e apaixonadamente buscamos por tudo aquilo em que queremos acreditar. O método do cientista e o do advogado, juntos, formam mais do que a simples visão sobre nós mesmos — formam a nossa visão de mundo.

Acreditar em algo que queiramos que seja verdadeiro e depois procurar provas para justificá-lo não é tarefa fácil. Por exemplo, caso você goste de Fórmula 1, é racional que você acabe torcendo para um dos pilotos. É normal que isso aconteça. Mas é irracional achar que o seu piloto favorito só ganhou a corrida porque você gosta dele. Da mesma maneira, faz todo o sentido aceitar um novo emprego porque você o acha atraente. Mas é irracional achar que o emprego é atraente só porque você o aceitou. Mesmo assim, embora, nesses dois exemplos, as escolhas irracionais não façam sentido, elas possuem algo que nos faz sentir felizes e a mente humana, geralmente, opta pela busca da felicidade.

Usamos o mesmo tipo de processo criativo para formatar a nossa autoimagem. Quando fazemos uma pintura do nosso eu, o lado advogado do nosso inconsciente mistura fato e ilusão: exagerando nossas forças, minimizando nossas fraquezas e criando uma série de distorções, em que ampliamos as partes de que gostamos e diminuímos ao máximo as partes que nos desagradam. Assim, o lado racional da mente acaba admirando com inocência o retrato “preciso” criado pelo inconsciente. Isso nos ajuda a acreditar na nossa bondade e competência, nos dá a sensação de que a vida é 100% controlável e que somos genuinamente felizes.

Então, pode-se dizer que o cérebro é um bom advogado, mas é um excelente cientista. O resultado é que para moldar uma visão coerente e convincente do mundo, e de nós mesmos, é o método cientista que acaba vencendo. A mente inconsciente é mestra em usar dados para construir uma versão de mundo que parece completa e realista para a nossa consciência. A percepção visual, a memória e até as emoções são construções feitas a partir de dados brutos, incompletos e às vezes conflitantes. É isso que nos induz ao erro. Porém, é óbvio que a parte consciente da mente não é boba. Quando o inconsciente distorce em demasia a realidade, de algum modo não acreditamos e percebemos o exagero. Todo nós sabemos, por exemplo, que é impossível pular de um prédio ao outro. E é isso que mantém a nossa sobrevivência: saber dosar as distorções produzidas pelo inconsciente.

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