Por Joyce de Sousa Silva
O ensino a distância tem produzido impactos gigantescos na vida de alunos e professores de todos os níveis do ensino. Se, por um lado, esse formato possibilitou grande acessibilidade, por outro, estamos exaustos de passar o dia saltando de uma tela à outra: a aula se dá no notebook; as interações com os colegas, no celular; as leituras, no e-book; e até o teatro, o cinema e a música encontram-se on-line. E nesse pular de galho em galho — ou de tela em tela —, não nos distanciamos o suficiente dos hábitos rotineiros para enxergar os impactos dessas experiências bidimensionais constantes em nossa vida social, na saúde e na mente.
Ao acordarmos, andamos a dispensar a luz do sol que, para Veloso, traduz-se em graça, em vida, em força e em luz. O costume é tomar um celular e contar com a iluminação artificial para acostumar os olhos ao dia recém-nascido. Todavia, esse hábito não dispensa a lógica da causa e consequência: em 2020, a Sociedade Brasileira de Oftalmologia divulgou dados que expressam um aumento de 39% de diagnósticos de miopia em crianças que estudam remotamente.
Nesse ritmo, a tendência é que esses problemas se estendam não só ao físico, como também à mente. Não é raro perceber que andamos a viver os momentos com mais superficialidade e sem uma ligação total com o que está a acontecer. Durante as aulas no celular ou no computador, todo tipo de entretenimento e distração está a distância de um clique… e lá se vai a atenção, fragmentada em uma porção de tópicos diferentes. O raciocínio se altera para um modo apressado e distraído e o pensamento torna-se preguiçoso. Assim, surgem as dificuldades de, verdadeiramente, nos aprofundar no aprendizado a distância.
Esse problema também afeta o tempo, que parece passar mais rápido — ou insignificantemente — do que nunca. Este ganha um ritmo maquinal e frenético, próprio da tecnologia que, desde o primeiro momento da industrialização, convive intrinsecamente com o homem. Reflexões sobre essa relação, que constantemente beira o obsessivo e o prejudicial, foram feitas em boa parte da história da arte, e, dentre as mais marcantes, destaca-se Tempos Modernos (1936), filme inesquecível pela mimese certeira e bem-humorada do recém-nascido mundo moderno. Acontece que diante das explosões tecnológicas, estamos mais próximos do protagonista e de suas desventuras do que pensávamos. Na obra, o trabalhador Carlitos continua apertando inconscientemente os parafusos invisíveis, como se ainda estivesse no expediente de trabalho, essencialmente mecânico. Nós, semelhantemente, mesmo fora do frenético universo cibernético, continuamos com o pensamento neste mesmo ritmo: rápido e raso, e a cabeça vai às nuvens — sejam elas digitais ou figurativas.
A respeito dessa relação, também Gary Small, professor de psiquiatria da Universidade da Califórnia (Ucla), em pesquisa sobre as alterações do funcionamento da memória de curto prazo diante desses fenômenos da rede, afirma: “A atual explosão da tecnologia digital não apenas está mudando a maneira como vivemos e nos comunicamos, mas está alterando rápida e profundamente nossos cérebros”.
Talvez, porém, o mais doloroso esteja no fato de que o ensino institucional a distância parece se reduzir, tão somente, ao aprendizado de matérias acadêmicas. Em nossa tradição cultural, este tem, também, o papel quase que ritualístico de iniciar e encerrar ciclos de vida. Por exemplo: as crianças reconhecem que estão crescendo quando adentram o ensino fundamental e passam a constatar outras crianças mais velhas, mais altas e com mais experiências; os jovens, em formaturas e festas de encerramento de ensino médio, entendem o fim da pura adolescência. Então, afastados e impossibilitados de celebrar com reuniões, festas, trotes e outras comemorações, esses momentos tão extraordinários e importantes parecem passar, simplesmente, em “branco”.
É necessário, apesar de tudo, admitir a inevitabilidade e utilidade desta absorção, cada vez maior, do mundo digital no mundo natural. Dessarte, a solução talvez habite o equilíbrio entre os dois planos deste modelo de existência em formação. Após uma aula de quatro horas em frente a uma tela, melhor seria uma imersão numa boa conversa frente a frente; depois de uma cansativa leitura virtual, uma caminhada debaixo do sol será, certamente, revigorante. E quanto à distância física, os afetos pouco a conhecem: é aí que usamos as telas a nosso favor, aproximando-nos dos colegas que compartilham nossas condições e juntam-se a nós na espera de que tudo isso passará e que, em breve, celebraremos o encerramento deste difícil ciclo.
Joyce de Sousa Silva
Estudante de Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.