Por Homero Santiago

O papa Francisco não é um conservador casca-grossa nem um revolucionário diletante. Gosto de concebê-lo como uma sorte de “visionário”, no bom sentido da palavra. Sem querer deixar tudo como está, tampouco vai chutar o pau da barraca católica; a distância, lobriga os novos rumos; sabe porém que, justo por serem “novos”, não se efetuam num passe de mágica. Daí o misto de sensibilidade e prudência de suas intervenções em temas candentes, tal como em 25 de janeiro último, quando uma entrevista produziu polêmica mundial.

Interrogado sobre a atual posição da Igreja Católica com relação à homossexualidade, entre outros esclarecimentos o papa defendeu a completa descriminalização desta e invocou a obrigação que os católicos têm de combater as “leis injustas”, sejam quais forem. “Ser homossexual não é crime”, ele ponderou, “mas é um pecado.” Com isso, não somente frisou a importância de distinguir as duas noções como ainda deu uma cutucada nos tradicionalistas, lembrando que — mesmo que não seja crime — para o cristão “também é pecado não ter caridade com o próximo”. Os católicos devem sempre agir com ternura, concluiu. Reencontrou, assim, palavras suas de 2013, quando ousadamente já exclamara: “Quem sou eu para julgar?”, sugerindo que a infalibilidade que a teologia católica atribui ao papa é inseparável de uma atitude cristã respeitosa com as diferenças. Em vez da certeza petulante e cruel (“sei que você é um pecador!”), uma douta e moderada, até um pouco socrática, ignorância.

A reboque da entrevista, o sumo pontífice recebeu inúmeras críticas — e, curiosamente, por razões opostas. Tradicionalistas o acusaram de fraquejar a doutrina, como se estivesse chancelando uma relação, segundo eles, “antinatural”; liberais reclamaram que nada mudava, pois a homossexualidade seguia tachada de pecaminosa. Penso diferente, como é fácil o leitor inferir. Entre o oito e o oitenta está um mundo cujos meandros são mais complexos do que o tropismo militante chega a sonhar. Por fortuna, o “visionário” papa é capaz de intuí-los.

Não sendo cristão, católico ou ateu, fico à vontade para somente expor minha admiração pela sutil sabedoria de Francisco. Inclusive, para demonstrar que nisso não vai nenhuma gratuidade, tomo a liberdade de remeter a um texto anteriormente publicado neste espaço, no qual acredito ter defendido uma posição até certo ponto convergente com a papal.

Não é porque uma religião determina que algo é pecaminoso que a lei deva considerar isso um crime; não é porque um deus qualquer não abençoa um tipo de relação humana que esta deva, ato contínuo, tornar-se criminosa. Ao falar de pecado, situamo-nos no âmbito privado da fé de um grupo de pessoas que pode estabelecer e desestabelecer regras à vontade, já que isso só diz respeito à própria comunidade dos fiéis que dão assentimento a tais normas. É diferente quando falamos de crime, visto que este tem por medida uma lei comum, concernente à totalidade dos membros de uma comunidade (um município, uma nação etc.). A distinção é suficiente para patentear o abuso e a injustiça de se pretender impor a vontade de um grupo a todos — e como bem diz o papa, todo cristão deve ir contra as “leis injustas”! Cada um pode acreditar no que quiser, desde que (eis o limite fundamental!) jamais pretenda enfiar goela abaixo dos outros as suas convicções íntimas.

Todavia, como é patente, incriminar a homoafetividade é uma forma de agressão aos que não compartilham do mesmo credo.

Friso esta palavra: credo, pois nesse assunto um quesito fundamental é a presença ou não da crença. O pecado é uma condenação que depende de crenças privadas (rigorosamente, só peca quem acredita no pecado); já o crime é um ato em conflito com uma norma pública que independe de anuência (alguém comete um crime mesmo que não acredite na lei). Cada um pode ter o seu deus e os seus pecados, na exata medida em que todos podem ter os seus deuses e os seus pecados ou não gostar de nada disso. Cada um no seu quadrado e ninguém atormenta ninguém; simples e eficaz. Já a lei e as decisões que relevam do campo da política, estas dizem respeito a todos; indo além do quadrado religioso, constituem um quiliógono em cujo interior todos, crendo ou não, temos de conviver.

Confundindo as coisas, tombamos na zona em que a religião e o direito se caruncham reciprocamente. Então, deixa de existir a possibilidade de convivência, pois cada campo quer apenas submeter o outro: o crente quer trucidar quem não compartilha de sua fé (exemplo: a Inquisição católica queimando judeus), o legislador determina a perseguição do crente (exemplo: um Estado declarando-se ateu). Ora, esses efeitos maléficos nós, brasileiros, conhecemos bem, infelizmente; não é segredo quanto eles têm atravancado, por obra de alguns, discussões fundamentais a todos: drogas, aborto, políticas de gênero, união civil etc.

Essa lamentável mixórdia surge de não discriminarmos, com o inteligente papa Francisco, o que toca a César e o que toca a Cristo, o que é crime e o que é pecado.


Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.

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