Por John J. Hopfield
Universidade de Princeton|NJ|EUA

Tradução Gilvan Augusto Alves

Diagramação e adaptação Ronaldo Campos

Crianças são naturalmente investigadoras, seja mexendo em insetos para ver como respondem, jogando galhos em um rio para ver até onde eles chegam, desmontando um brinquedo para ver como são as peças, ou imaginando para onde vai a água que some no ralo. Eu cresci em um ambiente que não somente tolerava, mas encorajava a exploração. Lembro-me de atividades que começavam no chão da cozinha, brincando com panelas, desmontando tudo que podia. Meu pai consertava de tudo – o telhado, o rádio, o encanamento, o carro, a fiação elétrica – afinava o piano, e ainda fazia jardinagem. Como criança eu prestava atenção em tudo que ele fazia, e em suas explicações sobre o que ele achava que estava errado e como as coisas funcionavam. Minha mãe tinha uma velha máquina de costura Singer, com pequenas chaves de fenda dentro de uma gaveta para ajustá-la. Eu podia usar estas chaves, desde que as colocasse no lugar depois, em tudo que eu pudesse pôr as mãos. Minha mãe me falou sobre a visita do médico da família, alguns anos antes, que veio ver uma de minhas irmãs. Ele se mostrou horrorizado porque eu havia desmontado um antigo toca-discos (um modelo manual) e as peças estavam espalhadas pelo chão da sala – e disse que eu não estava sendo bem vigiado e estava me comportando mal. A resposta de minha mãe foi simplesmente ‘bem, se ele não conseguir montar tudo de volta, o pai dele consegue’. Ainda me lembro da forma da chave de fenda. Outro equipamento interessante era uma lupa, útil para examinar formigas ou fazer um buraco em um papel usando a luz do sol.

Um pouco mais tarde, minha mãe encorajou a química na cozinha. Ganhei alguns tubos de ensaio, rolhas, e um livro descrevendo atividades tais como fazer hidrogênio com zinco, tirado de uma bateria velha, e vinagre, ou como atirar uma rolha através da sala usando vinagre e bicarbonato; havia também as propriedades múltiplas do enxofre quando aquecido até o ponto de liquefação e, além disso, de como fazer crescerem cristais de açúcar e sais. O hidrogênio era identificado por um estalido quando queimado com um fósforo. Os cristais nunca pareciam tão gloriosos como nas figuras; ainda assim era possível ver as formas simétricas e imaginar como aquilo acontecia. A tinta invisível foi outra surpreendente façanha facilmente executada na cozinha. Enquanto a maioria dos estudantes via pela primeira vez um corante indicador de acidez no laboratório de química, meu pai me mostrou que o repolho roxo era um ótimo indicador, tornando-se azul ou vermelho dependendo da acidez do meio.

Experiências elétricas começaram com um par de pilhas, alguns fios e lâmpadas. A atividade de que mais me lembro era enrolar um fio em um punhado de pregos de forma a fazer um eletroímã, e depois inventar coisas para fazer com ele como um telégrafo do meu quarto até a cozinha.

Brinquedos de armar foi o passo seguinte. Minhas ambições sempre foram maiores do que as peças disponíveis e meus dedos desastrados, mas tudo o que queria era construir algo que funcionasse, que fizesse alguma coisa interessante. Meus presentes de aniversário incluíam roldanas, cordas, serrote, martelo e pregos, para me ajudar a explorar esse mundo de construir coisas.

Eu queria um rádio. Meus pais não queriam o barulho que iria fazer. O acordo foi que eu deveria montar um receptor de rádio sem válvulas (isso foi antes de inventarem os transistores). Ganhei um antigo jogo de fones de ouvido e um velho boletim do Departamento de Agricultura ensinando a montar o receptor. A lista completa de material consistia nos fones de ouvido, um cristal de galena (sulfito de chumbo), e fios para enrolar bobinas em tubos de papelão. Esta montagem podia receber sinais de rádio de até 75 km de distância, sem a necessidade de pilhas. (O boletim foi escrito em 1930 para levar o rádio às fazendas que não tinham eletricidade). Mas eu queria captar estações de rádio mais distantes, daí encontrei um esquema de um rádio com uma única válvula, e economizei dinheiro para comprar a válvula. Minha introdução à eletrônica foi colocando a ‘mão na massa’, montando coisas simples, fazendo modificações, vendo o que funcionava. Foi bastante econômica. O grande mistério sobre o receptor sem válvulas era como um pedaço de fio em contato com o cristal de galena resultava em um sinal de rádio que podia ser ouvido. Só fui entender isso 12 anos mais tarde quando estava fazendo pós-graduação em física.

Uma bicicleta apresentava novas oportunidades. Alguns raios quebrados, o freio desajustado, e eu desmontava tudo. Algumas vezes era necessária a ajuda de meu pai ou uma visita à oficina, não para consertar a bicicleta – o que era muito caro – mas para comprar peças e descobrir como fazer o conserto.

Me interessei também em montar aeromodelos. Os primeiros tinham propulsão a elástico. Depois disso montei alguns com pequenos motores a gasolina, o que foi útil depois na manutenção de um carro não muito confiável. Algumas vezes lia sobre ciência em revistas e num livro sobre astronomia, mas acima de tudo, devorava tudo que achava sobre como as invenções do dia a dia funcionavam.

O ensino de ciências na escola era terrível. Antes do 12 anos nem se falava sobre isso. Nas primeiras aulas sobre ciência, meus professores ensinavam a decorar o nome das coisas, nada de montar ou entender como eram feitas. Minhas notas nessas aulas eram horríveis. Eu tive dois bons professores de ciências. Um de biologia que enfatizava a organização dos fatos, não a memorização, e o entendimento da relação entre organismos vivos. Foi minha primeira experiência com a ciência da observação. O outro foi um professor de química que tratava os adolescentes como adultos, suas aulas eram verdadeiras palestras, e no laboratório fiz experimentos sofisticados que só em livros da minha juventude tinha conhecimento. De uma hora para outra me tornei o melhor aluno da classe.

A Física trata da exploração do que não entendemos sobre o porquê das coisas, na busca pelos princípios fundamentais, fatos, e por uma descrição quantitativa. Alguns se encantam com os mistérios da origem do universo, ou a natureza do mundo em escalas incrivelmente pequenas. Para mim, tendo crescido curioso acerca do mundo a minha volta, e fascinado em entender e manipular as coisas, a parte mais interessante envolve as propriedades das coisas na escala humana, e como estas estão relacionadas com as propriedades das estruturas microscópicas.

Com isso tudo, era óbvio que meus estudos universitários me levariam para a física da matéria condensada. Meus dez primeiros anos de pesquisa foram sobre a interação da luz com sólidos cristalinos, e de como isso se relacionava com a estrutura eletrônica dos sólidos e as propriedades quânticas da luz. Foi uma época maravilhosa, pois havia sistemas em que praticamente nada era conhecido. Os experimentos aconteciam rapidamente, de modo que as teorias podiam logo ser testadas. Foi também, de uma certa forma, um excelente treinamento sobre modelos matemáticos de uso geral.

Com o maior entendimento sobre os sólidos, minha atenção se voltou para os sistemas biológicos, em que descrições baseadas em princípios físicos eram inexistentes, mas resultados experimentais quantitativos como os utilizados em física estavam sendo acumulados lentamente. A natureza de minhas contribuições não foi muito usual, pois costumo questionar diferentes coisas. De fato, embora seja mais conhecido por minhas contribuições à biofísica teórica, a natureza de minhas contribuições mais significantes não tem sido profundamente matemática. Tenho apenas procurado identificar problemas simples, estabelecê-los com clareza, e descrever suas soluções de forma a torná-los compreensíveis e passíveis de investigação pela física.

Meu trabalho mais citado é o primeiro que escrevi sobre como o cérebro funciona. Ele relaciona tópicos de física conhecidos – magnetismo e vidros de spin – ao fenômeno psicológico da memória associativa, utilizando um tipo de abstração física sobre o comportamento de uma rede de células nervosas interconectadas. Isso introduziu a idéia de computação em neurobiologia por meio de uma trajetória dinâmica de um sistema com muitos graus de liberdade movendo-se para um ponto (temporariamente) fixo de sua dinâmica. Conhecido hoje como ‘modelo de Hopfield’, essa idéia levou muitos físicos para a neurobiologia por ilustrar como as questões da neurobiologia podem estar próximas da física, e de como a modelagem em física poderia ser útil em neurobiologia. A formulação deste problema me tomou mais de dois anos entre reuniões e seminários de neurobiologia. Meu trabalho mais citado em biologia molecular descreveu a ‘revisão cinética’ (um método geral de ‘revisão’ no nível molecular) e foi também o primeiro que escrevi sobre o tema do tRNA ou síntese de proteínas. Novamente, foi uma questão de formular a pergunta certa. Um biólogo perguntaria ‘como a reação desejada acontece?’ enquanto eu encontrei um novo princípio perguntando ‘porque a reação não desejada não acontece, quando é tão semelhante à reação desejada?’

Meu interesse científico atual pode ser descrito em termos de ‘como pensamos?’ É o tipo de pergunta que sempre persegui, embora com a idade as perguntas se tornaram mais difíceis. Trata-se de biologia ou física? Não importa. Talvez a física seja melhor definida simplesmente como ‘aquilo que fazem aqueles treinados em física’.


Este artigo é de domínio público e tem por objetivo divulgar a ciência. Faz parte da coleção Algumas razões para ser um cientista que procura desmistificar e estimular o estudo da ciência — principalmente para os jovens.

Foto capa de Mick Haupt/Unsplash
Foto mídia de Monica Gozalo/Unsplash
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