Por Renata De Luca
As instituições brasileiras atuais possuem sistemas de cotas raciais ou sociais ancorados em leis federais e, desde que entrou em vigor, este tema sempre foi alvo de discussões acaloradas, variando de apoio e aprovação até aversão e intolerância.
Todas as políticas de cotas tiveram a mesma raiz ideológica: os movimentos inclusivos da década de 1980, já praticados em alguns países europeus, que idealizavam, desde os anos 1950, a formação de uma sociedade mais pluralista e tolerante às diversidades, que não favorecessem a repetição dos horrores racistas da Segunda Guerra Mundial.
No Brasil, esses movimentos foram muito fortes na inclusão de alunos com deficiências nas escolas, permitindo que aqueles antes assistidos por associações filantrópicas estudassem nas escolas de bairros, primeiramente nas nomeadas classes especiais e depois nas regulares. E, a partir dos anos 2000, os movimentos ganharam força, espalhando-se para além das escolas de ensino fundamental, chegando às universidades e ao mercado de trabalho.
No acesso às universidades, a preocupação deu-se em torno das cotas sociais, e a primeira a instituí-las foi a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, ao reservar 50% das vagas da graduação para alunos advindos das escolas públicas cariocas. Foi seguida pela Universidade de Brasília, em 2004, que utilizou o sistema de cotas raciais: negros, indígenas e membros de comunidades quilombolas. Essas iniciativas isoladas foram agrupadas em uma lei federal que ficou conhecida como Lei das Cotas (Lei 12.711), que tornou obrigatória a destinação de 50% das vagas em processos seletivos para instituições federais a cotas raciais e sociais.
Nas empresas, desde 1991 a legislação determina para aquelas que possuem mais de 100 empregados o direcionamento de 2% a 5% dos cargos para pessoas reabilitadas ou portadoras de deficiências (Lei 8.213).
Assim, aos poucos, nos últimos 40 anos, vimos a formação de um tecido social mais múltiplo, com as deficiências entrando no mercado de trabalho, mais negros frequentando as universidades (rompendo um ciclo de gerações de antepassados sem estudos), as mulheres ascendendo nas carreiras e a loucura sendo tratada com maior aproximação.
Atualmente, as cotas raciais e sociais (filhas do movimento inclusivo) estão presentes na realidade brasileira, mas a cada medida surge uma nova polêmica. A última envolveu índios e comunidades quilombolas sendo considerados grupos prioritários para a vacinação contra a Covid-19. Os argumentos se repetem, independentemente do motivo: protecionismo exagerado, paternalismo, política de aparências. Na outra ponta, diminuição da desigualdade social, racismo estrutural, igualdade de oportunidades.
Sou favorável às cotas como facilitadoras de acesso para aqueles que nasceram e viveram em condições de desigualdade, pois elas funcionam como uma escada rolante, levando com maior facilidade quem teve muitas adversidades no ponto de partida. Elas permitem a entrada de quem ficaria do lado de fora em um país onde a largada é queimada por condições de saúde e educação absurdamente diversas.
Mas, após entrar, a permanência não deveria mais ser regulada por qualquer obrigação legal. Como exemplo, cito o recente decreto que impede a dispensa sem justa causa do emprego de pessoas com deficiência enquanto durar o estado de pandemia (Lei 14.020). O que sustenta a permanência de uma pessoa no trabalho deve ser seu esforço, colaboração e entrega diária, e não a estabilidade garantida por qualquer impeditivo legal. Vale um recorte sobre o suplício que é a aplicação de demissão por justa causa no Brasil: os riscos de uma inversão são tantos que um tratado jurídico deve fundamentar tal ato. Acompanhei situações como a de um profissional que trabalhava à noite e levou colchonete para dormir enquanto deveria estar labutando; foi filmado, dispensado por justa causa e a empresa teve que se defender na justiça por ter filmado sem autorização. Manter alguém no emprego apenas por obrigação legal deveria ser ofensivo, tratado como um ato discriminatório, e não o contrário.
Durante meu percurso no RH, vi mais pessoas se aproveitando da estabilidade (por qualquer motivo) para acomodar-se do que bons profissionais serem dispensados injustamente. Acompanhei algumas privatizações e a reinvenção de profissionais que tiveram de aprender que permanecer no novo formato de trabalho dependia única e exclusivamente dos seus méritos. Você também pode ter tido um colega na universidade pública super gente boa, mas sem pressa de se formar e deixar a moradia estudantil gratuita. Em geral, excessos de garantias promovem acomodação!
Todo administrador sabe o custo da rotatividade, o tempo que se perde na curva da aprendizagem. Então, por que punir com multas ou impedir a dispensa? Isso, sim, é protecionismo e desigualdade. Não tenham dúvidas, a interferência do governo ao dificultar a saída de alguém não faz bem nem para quem ele acredita proteger.
Por fim, sistemas de cotas se fazem necessários em países desiguais como o Brasil até o dia em que, oxalá, as condições de acesso forem semelhantes, mas após facilitar a entrada, a permanência não deveria ser garantida por qualquer determinação legal.
Renata De Luca
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Diretora de RH da Security Segurança e Serviços, psicóloga (PUC/SP), psicanalista (IP/USP), mestre em Educação (FE/USP) e MBA em Gestão de Pessoas (FGV).