Por João Luiz Muzinatti
“Assim como uma cascata se torna mais lenta e mais rarefeita na queda, também o grande homem de ação costuma agir com mais calma do que faria esperar seu impetuoso desejo antes da ação” (NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, 2017, p. 239).
Este é o aforismo 488, do Humano, e tem o título “A calma na ação”. Nele, o filósofo das marteladas porta-se mais tranquilo do que de costume. E, também, propõe algo que nos evoca, de certa forma, paz e serenidade. Para ele, o sábio é sempre solitário em seus pensamentos, em sua mensuração das variáveis que determinam a realidade; e, via de regra, é “lento” em seu percurso intelectual. Em outras palavras, pensar cuidadosa e livremente requer maior dose de paciência e atenção, pois a realidade nos joga uma carga pesadíssima de diversionismos, os quais facilmente nos podem levar a equívocos e, até mesmo, a posturas injustas e autoritárias. Ler Nietzsche é uma das várias maneiras (que encontro) de poder pensar em mim — um pouco mais — no momento em que me proponho a tarefa de pensar algo mais geral ou urgente. E por que esta reflexão agora?
Porque vivemos tempos insólitos. Vivemos uma pandemia! Nosso mundo, de repente, para e espera; as sociedades dão um tempo em suas dinâmicas e põem-se a aguardar o que possa vir a acontecer. Aquilo que caracterizava nossas vidas dentro de um sistema econômico, de valores, de desejos e de decisões intercambiadas de repente se esmaece. E passamos a não ter mais, quase como por mágica, aquele afã de realizar o que sempre nos pareceu normal ou “natural”. Ficamos em casa, obedecendo àquilo que nos recomenda a ciência — fruto grandioso do esforço humano durante milênios — e que nos faz todo sentido, já que, infelizmente, o humano torna-se, numa epidemia, o principal vetor dos contágios. Não há o que fazer, pois não queremos a morte — de ninguém, por mais que nos tentem induzir a crer que algumas vidas (de quem, mesmo?) seriam menos relevantes do que a estabilidade econômica. E, nessa contracorrenteza do cotidiano, em que pensar? O que seria tão importante num momento em que a ordem é — como numa guerra — salvar a nossa e a vida de quantas pessoas mais pudermos?
Numa guerra — e aceito, aqui, tal comparação — há aspectos bastante importantes, os quais desabam sobre as pessoas apenas quando o mal maior cessa e as coisas começam a voltar ao normal. Trata-se do antes e do depois. Explico.
O antes: aquilo que, já sendo passado, não foi cuidado; foi deixado de lado ou ignorado enquanto não havia a iminência da morte. Aquilo que, se não causou exatamente a dinâmica da destruição, pelo menos poderia ter sido levado em consideração (como potencialidade) para que, em presença da catástrofe, estivéssemos munidos de estratégias capazes de conter, ou minimizar, a escalada de males que sobrevieram. E podemos pensar em tanta coisa neste nosso caso da covid-19!
Vivemos em uma sociedade em que o ter para si é sempre mais importante (e imediato) do que o compartilhar. Hoje, quando a crise eclode, as pessoas parecem ter extrema dificuldade em não sair comprando de tudo, compulsivamente, nos supermercados, gerando assim desabastecimento. Outra coisa: o pensamento no coletivo. Quando se pensa em quarentena, imagina-se uma situação capaz de evitar a velocidade extrema do contágio. E temos sérias dificuldades em cooperar com medidas que, embora nos incomodem individualmente, poderão servir para ajudar a impedir que a tragédia se torne incontrolável. A questão política: até que ponto escolhemos e mantemos pessoas no poder sem que auscultemos suas convicções ideológicas e de cunho pessoal, mirando-nos apenas em certas conveniências de ocasião que esta ou aquela eleição poderá nos trazer? Certas ações ou omissões podem nos fazer acéfalos, no longo prazo, enquanto sociedade civil. As lideranças mais humanas poderiam ser localizadas antes, não fosse nossa vocação para o imediato. Talvez porque tenhamos tendência, ou vocação, de pensar sempre imediata e individualmente. E mais: a educação! Até que ponto os conhecimentos desenvolvidos nas escolas não nos servem apenas para passar de ano, de maneira que, no auge da crise, estranhemos o que há de científico — que poderia salvar mais vidas do que acontece — e nos vinculamos preferencialmente a preceitos e superstições?
E o que dizer do depois? Bem, este é um tema para o hoje! Sim, pois o antes nos poderá servir apenas como fonte de reflexão para o que estejamos pensando neste momento. Seriam as avaliações, as possíveis correções de rota que, talvez, possamos propor para nossas vidas, daqui para a frente. Afinal, o que deu errado? No caso da pandemia, podemos dizer que é um fenômeno biológico (“inevitável”). Porém, as dificuldades de ação em se administrar a crise que presenciamos num país como o nosso são eloquentes demais para que não mereçam nosso pensamento mais acurado. A falta de preocupação, no passado, com a saúde pública; a urbanização racional e não predatória; as atenções concentradas em aspectos fúteis de nossas vidas. E isso enquanto permitíamos que preconceitos, desinformações, banalizações da cultura de massas, o culto às superstições num mundo tão tecnologizado e a valorização de discursos simplistas e antidemocráticos grassassem livremente pelo nosso país. Do que foi que descuidamos e que, hoje, nos assalta na rua, nos nossos medos e nas nossas incertezas quanto aos caminhos a seguir? E o principal: o que fazer a partir de agora?
Talvez não haja nada de tão urgente a fazer no nível individual. No coletivo, talvez seja possível que nos engajemos em campanhas que visem minimizar o sofrimento e a destruição. Mas, no plano pessoal de cada um… Para que haverá de servir esta quarentena? Quem sabe para pensarmos no depois. O que poderá acontecer depois do coronavírus? Para o sistema econômico, talvez possamos prever transformações, sim, pois parâmetros e conceitos — principalmente envolvendo Estado e mercado, por exemplo — já começam a ser questionados, sem dúvida. Na política, não há dúvida de que qualquer momento deve ser de atenção — principalmente para quem tem algum apreço pela democracia e a deseja preservar. Na educação: o que vale a pena ensinar para nossos jovens, a fim de que usem seus saberes em benefício do humano? Na vida pessoal: de que vale cuidar só de mim quando não sou nada sem o contato com o outro? (Ah! Que saudade dos contatos de verdade!) O que fazer de diferente, já que o hoje indica que o antes foi mal? Agora talvez seja justamente o tempo de começarmos a construir o depois.
Tendo iniciado esta reflexão com Nietzsche, volto a ele para finalizá-la. Tendo vivido e produzido na segunda metade do século XIX, nos dá um conselho, em pleno século XXI, quanto aos perigos de nossa sociedade. No aforismo 520, que tem o título “O perigo de nossa civilização”, faz-nos esta advertência, a qual recomendo para as horas ociosas da quarentena:
“Pertencemos a uma época cuja civilização corre o perigo de ser destruída pelos meios da civilização” (p. 243).
Referência
NIETZSCHE, F. W. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. (Coleção Companhia de Bolso).
João Luiz Muzinatti
Escritor e Professor. Doutor em Educação Matemática. Mestre em História da Ciência. Professor de Matemática e Filosofia – educação básica e superior. Professor especialista em distúrbios de aprendizagem em “ciências exatas”. Ex consultor do Ministerio da Educação e Cultura, em Filosofia – TV Escola. Criador e diretor do site “A Matemática e seus Problemas”, do canal de vídeos “Muzinatti” e do blog “Filopoesia”. Autor do livro “Inventário de mim”, ed. Scortecci. Engenheiro Mecânico.