Por Renata De Luca
Neste ano, a empresa russa de softwares para games Xsolla demitiu 150 dos seus 450 funcionários de uma única vez. O que atraiu a atenção e gerou discussões não foi a quantidade, nem os motivos que levaram a tal procedimento, mas sim quem recomendou a decisão: um algoritmo de eficiência no trabalho que mediu a produtividade e o comprometimento das pessoas e decidiu que 150 estavam fora.
O julgamento de um programa de inteligência artificial alimentado por big data orientou a decisão dos acionistas e coube ao CEO local acatá-la sem ressalvas. Ele deu uma declaração para a revista Forbes russa dizendo que não concordava com tudo, mas teve de obedecer, e o fato, somado a essa entrevista que colocava o CEO numa posição servil, causou muita polêmica mundo afora.
A tomada de decisões de recursos humanos orientada por softwares não é uma prática exclusiva da Xsolla, nem restrita ao mercado de tecnologia. Mesmo antes da pandemia de coronavírus, os algoritmos já auxiliavam em contratações, promoções e demissões, cruzando dados e trabalhando para deixar as escolhas menos calcadas em decisões subjetivas.
Um processo de recrutamento e seleção feito de maneira clássica era composto por etapas que incluíam análise de currículos, entrevistas e testes psicológicos. Por mais precisão que se busque nessas etapas, quando feita unicamente por humanos, há margem para decisões subjetivas, pois a tendência de todos é se relacionarem por meio das identificações, ou seja, tendemos a ter por perto pessoas parecidas conosco e isso influenciará a escolha de um profissional. Já há alguns anos, selecionadores ocultam intencionalmente dados subjetivos nos currículos dos candidatos para evitar a interferências de vieses inconscientes e preconceitos, tais como escolas onde estudou, raça e endereço. Isso é feito para que o superior imediato não exclua alguém antes de conhecê-lo com base em leituras prévias que certamente não permitirão a diversidade nas equipes.
Mas o processo de recrutamento e seleção mudou em empresas disruptivas desde a seleção dos currículos, que levava muito tempo e agora pode ser feita em segundos por um robô que cruza dados desses currículos com o exigido pela posição e filtra aqueles com maior aderência. Os antigos testes psicológicos também foram substituídos ou complementados por provas situacionais digitais que resultam em gráficos de adesão candidato/vaga de perfis e competências.
Agora, um novo horizonte se apresenta, com a inteligência artificial orientando demissões ao cruzar dados colhidos de realizações de tarefas dos colaboradores com a produtividade desejável. Imaginem um entregador de mercadorias: sua produtividade pode ser medida e comparada com a de outro colega, eliminando variáveis e respondendo quem entrega com mais eficiência. Basta cruzar informações como quantidade, rota, tempo, avaliação de satisfação de clientes, sinistros, avarias… Tudo em sistema, controlado em tempo real, interceptando dados, comparando-os e emitindo relatórios para quem toma decisão.
Como tudo que é relativamente novo, natural que suscite perguntas, tais como: É ético? Todas as variáveis podem ser medidas? E os valores subjetivos, não deveriam ser também levados em conta? Muitas companhias disruptivas têm, sim, “trocado os pés pelas mãos” e pecado em migrar o processo todo e não apenas uma parte para o digital. Pessoas estão sendo demitidas por correspondência a partir de decisões tomadas por algoritmos!
Em 2019, ganhou notoriedade o caso de Stephen Normandin, que foi demitido pela Amazon por e-mail e indignou-se com o fato, passando a dar entrevistas sobre o assunto. Ele se considerava um profissional ético, comprometido, eficiente e foi demitido sem uma conversa pessoal que explicasse quais razões levaram a inteligência artificial a concluir o contrário. Como não obteve resposta, nem um espaço para diálogo, concluiu que o algoritmo o considerou inapto devido à sua idade, 63 anos.
Outro exemplo de como não deve ser feito chegou por meio de um post da BBC Brasil antes mesmo de concluirmos este texto: Vishal Garg, CEO da empresa americana Better.com, convocou 900 funcionários para uma reunião digital e disse: “Olá a todos, obrigado pela presença. Não venho a vocês com boas notícias […]. Se você está nesta teleconferência, você faz parte do grupo azarado”. E assim, demitiu os 900 de uma vez, alegando desempenho, produtividade e mudanças do mercado.
O desafio desses novos recursos tecnológicos nos processos de recursos humanos é saber como utilizá-los. Eles devem ser balizadores para tomadas de decisão, mas não a única referência a ser considerada. Fazer uso do cruzamento preciso de dados isento de erros ou afetos para ter informações é extremamente útil, mas é preciso ter alguém contextualizando e interpretando esses dados. Tomada uma decisão, o velho e bom respeito, acompanhado da senhora consideração, deverão reger o restante do processo.
Renata De Luca
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Diretora de RH da Security Segurança e Serviços, psicóloga (PUC/SP), psicanalista (IP/USP), mestre em Educação (FE/USP) e MBA em Gestão de Pessoas (FGV).